Juventude inquietante

Os restos mortais da esposa ficaram a repousar, em campa rasa, num dos cemitérios da grande cidade cosmopolita onde viviam. Vieram para Lisboa, ainda novos, na esperança de melhor vida. Adaptaram-se. Tiveram filhos. Foram felizes. Ganharam dinheiro. Agora, tudo se desfazia. Cada cumprimento de pesar era mais uma lembrança dum mundo que, naquele momento, acabava de forma triste e brutal. Quatro filhos. Dois rapazes e duas raparigas. Três casados. Uma, a mais nova, dezassete anos incompletos, seria o lenitivo da dor no dia à dia. Arlete era jovem, cheia de vivacidade. Frequentava o ensino secundário. Passaria, no ano seguinte, para a Faculdade.

Depressa se recompôs do estado de viuvez. Encarou, de forma apressada, as circunstâncias do presente. A casa estava mais vazia. Aborreceu-se de preparar ou mandar confeccionar a comida. Fez uma corrida aos restaurantes. Nos bares esquecia o passado e comprazia-se com os prazeres do momento. A filha passou a caminhar, sozinha. O primeiro ano de estudos perdidos, que o pai nem sequer se apercebeu. Uma longas férias por esse Algarve quente, belo e convidativo, onde a areia e a água do mar era um bálsamo sublime, a fim de retemperar das noitadas cansativas passadas nas discotecas.

Quando regressou, cheia de ilusões e desilusões… esperava-a a madrasta, de ar frio, distante e porte altivo. Uma revolta, desde logo, nasceu dentro dela. Reprovou a atitude do pai, mais agravado, por não ter consultado os filhos. Obteve um simples encolher de ombros. Estava dominado, vencido. Entre as duas, de imediato, travou-se uma batalha familiar. Ganhou a experiência da mulher feita. O desejo e a volúpia afastou do coração daquele homem o amor de sua filha. A casa onde nasceu já não parecia a mesma. O retrato de sua mãe fora substituído. A única solução que lhe restava era deixar aquele inferno. Tinha amigos.

Arrajaria um emprego. Estudaria como voluntária. Havia de mostrar àqueles que a marginaram, que a sua mocidade e o seu querer se sobreporiam a todas as intempéries de existência.
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Um anúncio, nos jornais diários, precedido de fotografia duma jovem, chamava a atenção para o facto de ter desaparecido. Não foi difícil à polícia encontrar a Arlete. Como tinha atingido a maior idade, nada a moveu a voltar para casa. Antes morrer, do que viver com a madrasta. O pai, mais uma vez, não teve forças para resolver o problema de forma acertada. A rapariga ficou mais só, na cidade grande, maravilhosa e bela, mas carregada de encruzilhadas perigosas. Guiada para uma amiga do acaso, alugou um quarto e manteve conhecimentos. Os primeiros passos, ainda a medo e oscilantes, com uma enorme ânsia de gozar a juventude, ser amada e amar, conseguiu controlá-los. Comia em qualquer restaurante, dos mais luxuosos, acompanhada ou só. Andava bem vestida. O dinheiro não faltava. Com o andar do tempo começou a drogar-se.

Durante as horas em que estava sob aquele efeito, tudo era belo, fácil e convidativo ao prazer. Depois, vinha o pior! As realidades cruéis do seu viver, com os seus revezes, os seus fracassos, as suas múltiplas tentações. Através da injecção endovenosa de heroína, das fumaças de haxixe e de marijuana, ou até, tomando alucinogéneos, procurava paraísos artificiais, que cada vez se enterrava mais no lamaçal humano. A polícia, casualmente, não a encontrou numa busca que fizera ao local onde morava. Sem vontade própria, mas por medo, conseguiu, a muito custo, afastar-se daquele vício. Voltou, novamente, a fugir à realidade. Embriagava-se, agora, para esquecer. Naquele estado sen

tia uma satisfação íntima em pegar no telefone e insultar o pai. Atribuía-lhe toda a culpa do seu fracasso. Sob o efeito do álcool, o telefone tocava sempre, sempre… O ancião, totalmente derrotado, pesava-lhe a alma, a consciência e o remorso. Como residia para os lados de Alcântara, a linha férrea do Cais do Sodré — Cascais — foi o seu fim.
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Arlete ainda era nova. O aspecto, mesmo a suportar todas aquelas vicissitudes, tornava-se mais atraente, maduro, à medida que os anos avançavam. Foi convidada a visitar a cidade do Porto. Passou a trabalhar num bar convívio.

Embora as tempestades da vivência principiassem a pesar na sua silhueta, ainda conservava beleza, atracção e aparente doçura, fazendo com que fosse bastante procurada. Aquele ser frívolo, como que paradoxalmente, irradiava vida, alegria, contrastando com o que lhe emanava da alma. Linhas subtis, busto bem desenhado, cabelos compridos cor de mel, que com o vento produziam ondulações melodiosas, olhos castanhos, eis os atractivos daquela jovem que escondia o passado sob um coração bondoso que se habituou a não acreditar em ninguém.

Após uma doença que a vitimou, durante longos meses, presa a uma cama na enfermaria do hospital, onde a solidão lhe fez bem, quando teve alta, parecia outra. Muitas vezes chorou, tapando a cabeça com o lençol do leito, nas horas da visita. Abraços, beijos, sorrisos, lembranças e, para ela, nada! Indiferença. Os amigos da capital, principalmente aqueles com quem esbanjou o dinheiro, agora, não se lembravam dela. Raramente, sempre a correr, visitava-a a dona da casa onde alugara um quarto e que, por compaixão, guardava, ainda, os seus poucos haveres.

Que fazer se obtivesse cura? Como encarar, novamente, o mundo? – pensava. O bom senso, alicerçado pelos conselhos de sua mãe, na infância, e os estudos que os livros e os mestres lhe ministraram, deram-lhe o norte, perante o mutismo em que se tinha prostrado.

Colocou-se na secretaria do hospital onde recuperou a saúde. Ganhava menos. Sabia melhor. Pôs todo o passado de parte. No presente, veio a encontrar alguém, embora mais velho, que soube compreender e perdoar as tolices daquela juventude.
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Passeavam os dois, de mãos dadas, no jardim da Cordoaria, depois de terem lanchado numa pastelaria da baixa, após a saída do emprego. Conheceram-se. Ele era viúvo. Ela trazia-lhe a alegria de uma mocidade passada. Sentaram-se num banco que ladeava um canteiro de relva fresca e verde. Fios de água corriam, no pavimento, que uma máquina, em muitas direcções, espargia pelo chão. Na linha do horizonte visual admirava-se a Torre dos Clérigos, com a sua traça setecentista, aliado a outros monumentos, igrejas, quartéis, conventos, casas, solares e o Tribunal da Relação. Mais ao lado, o hospital, onde o apito agudo de uma ambulância, rasgando o espaço, punha uma nota de pungente reflexão entre a vida e a morte. A abóbada celeste deu sinais que a tarde principiava a franjar de escuro os montes e o casario que se erguiam para o outro lado do rio Douro. O dia esteve muito quente e abafadiço no declinar do Verão. Pela tarde fora, a pouco e pouco, foi refrescando.

Lentamente, as cores vivas do céu tinham-se esbatido. O sol foi-se esfumando. A luz eléctrica, embora, ainda, com alguma claridade, começou a impor a sua presença.
– Vais logo ao cinema? – perguntou, a certa altura, a rapariga. Apetecia-me ir até uma esplanada da Foz. Depois, comíamos uma “mariscada” em Matosinhos.

– Não. Hoje levo-te a minha casa. – Fez pausa, sorrindo. – Quero que o meu filho te conheça. Tenho falado muito em ti. Penso que seremos bem aceites.
O rosto da jovem iluminou-se. Uma leve aragem fez com que o cabelo a tornasse mais bela. Levantou-se, num ímpeto. Desatou a correr… O seu corpo desenhado por umas calças brancas de linho e blusa azul escura de tecido muito leve, sobressaía no ambiente do jardim. A relva parecia mais verde. Correu atrás dela. Depressa a alcançou. Prendeu-lhe as mãos entre as suas. Carinhosamente, afastou o cabelo sedoso, macio, perfeito, que o vento espalhou pela face. Com meiguice, interrogou-a:
– Porque foges?
– Desculpa! – Afirmou, com ênfase. – Não acredito em ninguém. Há muito tempo que perdi o amor. As tuas palavras meteram-me medo.

– Sossega. O amor – a falar meio compassado – da tua parte, virá mais tarde. A mocidade é boa e irradia juventude, prazer e alegria,. Contagiando e prendendo as pessoas da minha idade que com ela partilha. – Com voz firme – Vamos seguir este plano. Não te arrependerás. – Fez pausa – A ventura resulta da hora em que dois seres se unem e o espírito se alia, no seguimento, como é natural, dos procedimentos salutares que sempre tem norteado a minha conduta.

Não obteve resposta. Os seus longos dedos, que umas unhas bem tratadas se faziam notar, pintadas com requinte, de vermelho escuro, apertaram, com mais força, a mão que os entrelaçava. E caminharam, abraçados, alheios a tudo e a todos, à procura da felicidade que a ambos tinha fugido…

Nota: Este conto, por vontade do autor, não segue a regra do novo acordo ortográfico.

Foto: Expresso

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