Memoriar

Com as celebrações que norteiam a quadra natalícia, o fim do ano corre, apressadamente, para a meta final. A noite enegreceu, para alguns, caindo as suas sombras, pesadas e tristes, sobre a terra. Pela noite adentro, as horas foram avançando, as últimas horas do ano, até à derradeira, a hora do desenlace. É nesta hora, na hora fatídica da meia noite, que se estabelece o choque entre um ano que acaba e outro que começa. O Ano Novo que desponta é uma fonte de esperanças e ansiedades que se agitam. Um ano que passou, para muitos, é um mundo de desenganos, a tentar esquecer. Ao fazer-se o inventário do ano que terminou, nele encontramos bom e mau, que, forçosamente, vai suceder no que se lhe segue. Surge um conflito nas almas perante um universo de desilusões amargas que cai e um outro universo de esperanças consoladoras iniciado. É a hora síntese, a desejada hora de sair. Esvai-se um contigente de desilusões para principiar um outro, de esperanças remoçadas. Com a derradeira noite do ano que agoniza evolam-se as últimas quimeras que arquitectámos. Com a madrugada do primeiro dia que aparece, é uma esperança que se ergue na noite sombria do sofrimento humano. Na crença enganadora de que o que entra será melhor, amaldiçoamos o passado, que ontem incensámos, para abençoar o que entra, que amanhã será, por sua vez, o desprezado. É todos os anos a mesma coisa. Umas rugas a mais, um triunfo a menos, um pouco mais de experiência e até enriquecimento da filosofia de viver, tanto no aspecto positivo como negativo.

Nesta sequência, no cumprimento das leis da existência e da morte, o tempo, supremo e implacável senhor dos mundos, mata um ano para dar origem a outro. Pode tudo não melhorar, o mundo ficar igual ou pior do que era, a humanidade feita da mesma lama, dos mesmos crimes, das mesmas imperfeições, que o tempo não pára na sua ânsia renovadora. Foram criados os anos para que as pessoas não desanimem e ao contacto de cada ano que chega sintam remoçar-se para a luta da vida, ao inundarem-se de esperanças regeneradoras, como as árvores na Primavera cobrem os seus troncos, alguns ressequidos, com as flores mais belas e viçosas. O Ano Novo é a Primavera das gentes, que elas acolhem com demonstrações de alegria e ternura, porque é uma estação prometedora. Chega em pleno Inverno para salvar as ilusões e as crenças que as decepções do ano findo não mataram completamente. Agora, diz-se, vida nova! Quantos votos, quantas esperanças, quantos projectos… E tudo isto enquanto não vem o desânimo, a primeira promessa que se esfarela, o primeiro projecto por realizar. Então, começa a tornar-se velho, pesado, aborrecido. O juízo do ano somos nós quem o formulamos, com os nossos vaticínios, com as nossas esperanças, com as nossas fortunas ou pobrezas e com as nossas desilusões. Em qualquer parte do globo terrestre, na guarda do tempo, venerável e caprichoso cavalheiro, os anos rendem-se como as sentinelas na guarda dum quartel. Sempre o mesmo cerimonial, as mesmas obrigações deixadas e os mesmos deveres a cumprir, porque a função dos anos, ao serviço do tempo, é sempre a mesma, a de apontar às gentes o caminho da vida para a morte.

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O ano de 2018 está a acabar. Houve quem não gostasse e houve quem ficasse satisfeito. Os cartomantes e os astrólogos de todo o mundo já iniciaram o lançamento das suas profecias para o ano que irá começar. No entanto, tenhamos, sempre, esperança. O ano a findar mostrou um séquito respeitável de desastres, morticínios, terramotos, naufrágios, inundações e outras tragédias. Mas deixou-nos algumas coisas boas e muitas outras hão-de renascer, ainda, dos escombros dos incêndios ateados, para classificação futura. É assim que se faz a conquista do progresso, porque com a desgraça de alguns lucram outros. Seria infantil pensar-se que não vai haver paz, juntamente com a guerra, a destruição e, também, a construção de vários planos na área científica. Que o Ano Novo, que vai chegar, ungido pela graça das suas esperanças, seja propício à fortuna, à saúde, ao amor, secundado, ainda, de um manancial perene de tranquilidade.

Nota: Este conto, por vontade do autor, não segue as regras do novo acordo ortográfico.

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