O sonho mirabolante

Num dia friorento de Inverno com rajadas de vento, juntamente com as fortes chuvadas, antecedidas de trovoada, a baterem na janela do meu quarto acordei, além do fustigado pelo mau tempo a cintilar, na memória, o sonho bastante contundente e agressivo que tivera durante a noite.

Na orla marítima, a sentir-se o movimento das águas oceânicas a baterem nos rochedos da praia e o cheiro a iodo, protegido, ao longe, pela verdura airosa que a paisagem mostrava, aterrou, fantasiando, de parapente, um monhé, oriundo de continentes tropicais. Apresentava, ainda, a dentadura de leite, mas a tentar mostrar, de imediato, uma atrevida esperteza, tendo começado a pedalar, desde logo, sem querer respeitar a integração e as metas de chegada.

Deambulou, meio atordoado, pela cidade. Urbe que sabe, sempre, receber, embora, mais tarde, muitas vezes, tenha-se arrependido. Procurou apoio para poder, com mais força, mover, na caminhada, os pedais do seu triciclo, ainda primário, mas que no decorrer dos tempos haveria, inúmeras vezes, de alterar para veículos de alta cilindrada.

De caixeiro viajante, a metalúrgico e de amanuense a apoiante, depressa este safado aventureiro subiu os degraus da aparente maturidade ao enganar os seus correligionários. Enveredou pela política, porque pretendia saborear um gostoso filé de lombo e não um simples bife duro do cachaço.

Em princípio, ainda a meio, principiou a dar os primeiros passos à espera que se abrisse no caminho do sistema um buraco para construir, de vez, a sua toca, que veio a aparecer. Alcançou o covil. Respirou fundo. Um sorriso enigmático transpareceu na face do monhé, que se podia interpretar das mais variadas espécies, sem ladear, nunca, aventureirismo, a mentira, a imparcialidade e a injustiça para todos aqueles que não girassem na sua área de clientelismo.

Passou a ser de falhado, agora, na aparência a um senhor todo poderoso na sua gaiola enganadora de gerir. Nos burros, para seguir, em frente, sem olhar para os lados, são colocadas umas palas laterais nos olhos, a fim de respeitarem as prioridades colectivas ao serem guiados pelos seus condutores. Mas este jumento caminhou sem pala. Foi progredindo. Conquistou poder. Passou a reinar com vendilhão da sua causa usando o cinismo, a intriga, a indiferença, a corrupção, enfim o vale tudo para, sem olhar a meios, atropelar os seus opositores. E o povo?… Que se lixe!

Bem vestido e todo engravatado, a imitar um papagaio de bico amarelo a propalar, de voz fanhosa, na sua gaiola doirada as mais variadas asneiras, pavoneando-se, nas ruas da cidade, de porte provocante, virando a cara aos cumprimentos que lhe eram dirigidos.

Quando o “Zé Povinho” pretendia ser recebido para lhe apresentar a sua mágoa de viver, tinha de transpor diversas barreiras de impedimento e não era recebido, ou, então, passava a ser ouvido por um dos seus bajuladores, que após um sorriso de escárnio, rematava:
– Vamos transmitir ao nosso patrão…

A independência das pessoas, no seu predomínio, não era aceite. A maioria das gentes, devido aos seus dislates, denominaram-no de parasita, que de tipo paraquedas, no ilusório, desceu da atmosfera, aparecendo naquela terra, onde passou a mostrar, através dos seus actos, uma forte superfluidade.

Não parava, este monhé, de querer subir, cada vez mais, nos escalões do viver, num cenário que montava, artificialmente, para lhe conceder prestígio e visão de autoridade. Caíam no silêncio os pedidos de resposta que lhe eram dirigidos a não ser para os que davam pancadinhas nas costas, ou faziam parte do seu ciclo de caciquismo. Correu mundo por conta do erário público, com uma voraz vontade de se ausentar, por tudo e por nada, criando hiatos de afastamento. O povo residente e pagante de impostos, na sua sabedoria, em tom de crítica, afirmava: Lá anda o fantoche a divertir-se à nossa custa.

Tudo tem um fim. Aquele cenário do seu reinado estava a terminar. Não parou. Aventurou-se a outros domínios, que alcançou, enganando os que giravam à sua volta. Nesta digressão de atitudes, mostrando um protagonismo balofo, acompanhado do seu peculiar hábito de intriguista secundado por gestos grotescos continuou a deixar cair a máscara do bom senso.

Mostrava diversos tiques em todo este emaranhado de propósitos, que alguns deles se assemelhavam aos dos animais irracionais. Perante este deambular grosseiro no imaginário comparativo fartou-se de pastar erva ou feno nos campos da planície do seu estatuto de repressão, que encheu o bucho, tendo-se saciado, ou os outros, a certa altura, acabaram por se cansar dele.

Atenta esta peregrinação obteve uma apetitosa reforma, paga pelos impostos populares, que ele, monhé, afirmava de merecida. Regressou à barra onde, muitos anos antes, no idealizar, tinha aterrado de parapente. O que roubou, além da reforma, dava-lhe para manter um estatuto social bastante abrangente. Mas sentia saudades dos tempos áureos! Deixaram de lhe dar importância. Nas ocasiões em que afastava o cumprimento, agora, desejava-o, mas não era correspondido.

A natureza, nesta parte da sua vivência, encarregou-se de o castigar. Além das punições dadas pela população vieram, outras, ao seu encontro, numa continuidade que o monhé não estava à espera. A justiça é lenta, mas vai-se revelando. Acabou por seu julgado. Cumpre, agora, prisão efectiva.

Nota: este conto, por vontade do autor, não segue a regra do novo acordo ortográfico.

Foto: “Wikipedia”

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