O valor do perdão

O André Ventura ia muito mal nos estudos. As notas, nos períodos lectivos, aliadas ao comportamento escolar eram, sem dúvida, uma decepção para os pais. Como bons burgueses, sonhavam ver o filho formado e bem sucedido na vida. Como as contrariedades e os procedimentos contraditórios aumentavam, à medida que o moço crescia, o pai reflectiu, meditou, até que resolveu propor um acordo ao seu único herdeiro.

­- Meu filho – fez pausa – se mudares o comportamento e dedicares-te, realmente, à tua função de estudares, conseguindo entrar na Faculdade – sorriu – como recompensa terás um automóvel.

O jovem, devido ao estímulo apontado, mudou radicalmente. Passou a dedicar-se ao estudo e a ter um porte exemplar. Os pais ficaram felizes. No quotidiano, o progenitor mantinha, no íntimo, uma preocupação. Deduzia que esta brusca mudança de estar não nascia, possivelmente, de uma atitude sincera, mas apenas no interesse de obter o veículo.

– Isso era mau! – pensou.
O rapaz seguia com interesse e afinco os estudos. Teve acesso à Faculdade. Ao fim de cinco anos licenciou-se em Medicina.
O pai, como havia prometido, para comemorar, reuniu a família e os amigos. Foi uma festa de arromba, que até meteu um conjunto musical.
O jovem, agora já homem, aguardava, ansioso, que o acontecimento terminasse, pois esperava receber o carro. A certa altura, o pai falou, elogiando o filho pelo resultado alcançado e passou-lhe, de seguida, um embrulho para as mãos.

O recém-formado, pensando que, naquele pacote, estavam as esperadas chaves que fariam movimentar o automóvel, abriu-o, emocionado. Para sua surpresa, o presente era uma Bíblia. Ficou visivelmente decepcionado. Nada disse. Retirou-se.

Os pais eram judeus, que viviam em França, mais propriamente, em Paris. Conseguiram fugir quando, na Segunda Guerra Mundial, as tropas alemãs comandadas pelo ditador Adolf Hitler, na sua cega perseguição a diversa classe de pessoas, com maior proporção para a raça judia, invadiram aquela nação.

Entraram em Portugal pela fronteira de Elvas, apresentando um visto do saudoso e benemérito cônsul que não respeitou as directrizes emanadas pela hierarquia do Estado.

Na nossa terra tiveram bom acolhimento e protecção. Radicaram-se no norte do País, onde conseguiram, de novo, sossegar, ao mesmo tempo que estabilizaram a vida familiar com o nascimento de um filho.

A Bíblia é um texto sagrado das religiões cristã e judaica, mas com uma maior inclinação dos sentidos para esta última, na prática de judaizar, razão pela qual o pai envolveu, deste modo, o presente.
A partir daquela ocorrência festiva, o silêncio, o distanciamento e a falta de diálogo separou aquelas duas pessoas. Deixou a casa paterna. Raramente dava notícias.

O tempo passou. Após o estágio ficou a trabalhar no mesmo hospital, além do consultório particular. Tornou-se num médico atencioso, sabedor e disciplinado. Depressa criou nome. Não obstante o pai ter tentado, por todas as formas, reatar os laços que tinham sido perdidos, afastou-se por completo da família.
Um dia, o ancião adoeceu, na tristeza da separação. Não resistiu às sequelas da vida. Faleceu. No enterro, a mãe entregou ao filho a Bíblia que tinha sido o último presente do pai, e que a tinha deixado, rebeldemente, para trás, num canto do seu quarto de menino e moço.

De regresso à sua habitação, indiferente, depois de ter dado cumprimento a um dever social, que não lhe deixara qualquer marca de pesar, o jovem médico, que nunca perdoara o pai, ao colocar a Bíblia numa estante, apercebeu-se que havia um envelope dentro dela. Ao abri-la, encontrou uma carta e um cheque. A missiva referia:

– Meu querido filho, sei quanto desejas ter um carro. Prometi e aqui vai o cheque para comprares aquele que mais te agradar. No entanto, fiz questão em te oferecer outro presente ainda melhor, segundo o meu entendimento, que é a Bíblia Sagrada. Nela aprenderás o amor de Deus e a fazer o bem, não pelo prazer da recompensa, mas pela gratidão e pelo dever de consciência.
Foi um choque! Uma tempestade de tristeza nasceu dentro dele. Era tarde demais para pedir perdão embora, em qualquer altura, o arrependimento possa surgir.

Corroído de remorso, em profunda lamentação, pensava:
– Como é triste a vida dos que não sabem perdoar. Isso leva a erros terríveis e a um fim ainda pior.

O turbilhão de sentimentos negativos, com o tempo, foram-se diluindo no seu coração de filho e, agora, também de pai.
Muitas vezes, nas horas de descanso, com o filho no colo, carinhosamente, depois de lhe contar a questão que tivera com o avô dele, dizia-lhe:

– Quando entenderes a vida, antes que seja tarde, perdoa aquele a quem pensas que te fez mal. Se olhares com cuidado vais notar que há, sempre, uma mensagem escondida em todas as adversidades da existência humana.

Nota: Este conto, por vontade do autor, não segue a regra do novo acordo ortográfico.

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