“É mudando práticas e atitudes que olhamos por nós e pelos outros”

Carina Castro Silva, com 34 anos, é médica no Centro Hospitalar do Porto e foi apanhada pelo vírus SARS-CoV-2. Natural de Vila de Punhe esteve, em casa, a cumprir o isolamento profilático e garante que apesar de “não ser fácil” sabe que é a única solução.

Apesar de ter sintomas ligeiros, Carina Silva aconselha a estarem atentos não só à sintomatologia respiratória, mas também aos problemas gastrointestinais, que apesar de “menos frequentes” podem surgir em casos positivos de Covid-19.

Após cumprir três semanas em isolamento, ao regressar à “normalidade” vai continuar a manter os rituais de higienização das mãos e distanciamento social. Pedindo a que todos façam o mesmo para que possamos “cuidar de nós” e “dos outros”.

Apesar de toda a atenção, mesmo a mediática, estar centrada no novo coronavírus, a médica adianta que as outras doenças continuam a ocorrer. Nesse sentido, aconselha que “se tiverem um sintoma ou sinal que não seja dentro do vosso padrão habitual, não devem deixar de recorrer aos serviços de saúde”.

A Aurora do Lima (AAL): Foi infetada com a Covid-19 em trabalho?
Carina Silva (CS): Sou médica, Interna de Formação Geral. No início do mês de abril, fiquei infetada pelo novo vírus que todos os dias ouvimos falar, o SARS-CoV-2. Possivelmente, fui infetada em trabalho, num dos dias em que observei várias pessoas com problemas respiratórios. E mesmo tendo os cuidados devidos, quando se trabalha muitas horas, pode haver sempre gestos ou momentos em que nos podemos comprometer.

AAL: Quais os sintomas que teve?
CS: Quanto aos sintomas, a apresentação foi variada. Fui-me sentindo cansada, o que desvalorizei pelo trabalho realizado diariamente. Depois apareceu a febre (temperatura superior a 38ºC) e cefaleias, que no meu caso apenas duraram dois dias. Posteriormente surgiram dores musculares e articulares, dor torácica, durante mais ou menos quatro dias, juntamente com um cansaço extremo.

AAL: Não apresentou sintomas de dificuldade de respiração?
CS: Apesar de não ter apresentado sintomas respiratórios, o quadro clínico da Covid-19 é caracterizado por sintomas respiratórios, sintomas constitucionais, e menos frequentemente, sintomas gastrointestinais. Sendo assim, importa estarmos atentos a todos os sintomas que possamos ter, dando especial atenção, se surgir tosse persistente ou agravamento da tosse habitual, febre ou dispneia/dificuldade respiratória. Felizmente, pertenci ao grande grupo de pessoas que apenas apresentam uma doença ligeira (80%), e mantenho-me em isolamento social no domicílio, sem qualquer contacto com os meus familiares, e sou monitorizada por uma equipa médica à distância através de chamadas telefónicas periódicas.

AAL: Ainda está em isolamento?
CS: Neste momento, encontro-me na minha terceira semana de isolamento. Sem sintomas, mas os testes ainda revelam que tenho o vírus, ou seja, sou positiva como muitos dizem. Os dias vão passando, por vezes são aborrecidos, porque não podemos sair do quarto ou do espaço da casa que nos está confinado. Mas como tudo, olhemos para o que nos acontece, com outra perspetiva, agora temos tempo. Podemos fazer o que gostaríamos e nunca o fazemos, por falta de disponibilidade. Ler um livro, ver um filme, ver uma série, ouvir música, aproveitar as redes sociais para nos por em contacto com amigos. Telefonar a alguém que não vemos e gostávamos de saber novidades. Sim, não é fácil estarmos sozinhos, ou passarmos tanto tempo connosco. Mas às vezes faz falta. Contudo, a meu ver nunca estamos completamente sozinhos. Eu passeio o meu aniversário neste período, foram uns anos virtuais, e não deixei de sentir o afeto e carinho de quem nos acompanha. De facto, preferia estar a trabalhar no que fui designada, tratar e cuidar de doentes. Agora tenho de cuidar de mim e ao estar isolada, cuido também dos outros, para que não fiquem infetados por minha causa.

AAL: Como médica como perspetiva o futuro desta pandemia? Até haver vacina ou medicamento, a normalidade não vai, certamente, regressar?
CS: Sendo uma doença nova, ainda há muito para ser estudado, para ser descoberto e para aprendermos. Mesmo após estes meses, muito pouco se sabe. Apenas sabemos que teremos de mudar os nossos hábitos, até conseguirmos perceber qual o tratamento mais direcionado ou se vai mesmo existir uma vacina que nos consiga proteger. Por conseguinte, todos teremos uma enorme tarefa para que o mundo possa minimamente e dentro do possível, voltar ao seu normal. É mudando muitas das nossas práticas e atitudes, que olhamos por nós e pelos outros: como lavar as mãos com regularidade (com água e sabão, durante pelo menos 20 segundos), cumprir as regras de etiqueta respiratória (tossir ou espirrar para o antebraço ou para um lenço de papel e descartando-o em seguida), evitar tocar na cara, usar a máscara corretamente (uma vez colocada não mexer nela até a remover), não partilhar os nossos objetos nem a comida, arejar sempre as divisões da casa e do trabalho, manter a distância social de pelo menos dois metros (por muito que nos custe), planear o dia e as nossas compras (evitando ir muitas vezes ao mesmo sítio). Ficar em casa sempre que for possível, e prestar mais atenção e cuidado às pessoas com mais idade ou que tenham doenças que as deixem mais frágeis. São tantos os gestos que podemos fazer no nosso dia a dia, de forma a proteger todos e continuarmos de alguma forma a nossa rotina diária. Sabendo que não é o ideal ou o que desejaríamos. Mesmo da minha parte, como médica e como cidadã, vou manter os cuidados após ter tido a doença.
AAL: Como é natural as pessoas estão muito focadas na Covid-19, mas há outras patologias que não desapareceram. É necessário estar atento a algumas delas. Quais?
CS: Para além da Covid-19, o mundo continua a girar e o que acontecia antes, continua a ocorrer, principalmente em termos das doenças que já existiam. Não é só porque todos os dias as notícias enfocam a Covid-19, que não deixa de haver acidentes, neoplasias, infeções, enfartes, AVC’s, reações alérgicas, pessoas que ficam doentes e não têm Covid-19. Portanto, não nos esqueçamos delas. Por mais medo que haja em ir a um hospital ou a um centro de saúde, os profissionais continuam lá para cuidar de quem precisa, mesmo que seja através de uma chamada. Ou seja, se tiverem um sintoma ou sinal que não seja dentro do vosso padrão habitual, não devem deixar de recorrer aos serviços de saúde, através do 112, da linha SNS 24 (808242424) ou mesmo dirigindo-se diretamente às instituições de saúde. As doenças não deixam de existir e continua a ser importante manter a prevenção das que podemos. Isto pode ser feito através do acompanhamento das doenças crónicas, como a diabetes, hipertensão arterial, asma e também com a administração de vacinas. Por isso, não devem deixar de cumprir o plano nacional de vacinação, principalmente nas crianças e grávidas.

AAL: No futuro, certamente vão surgir novas doenças, sobretudo do foro psicológico. Que conselhos daria?
CS: Com todas estas mudanças, as pessoas ressentem-se, suscitando sentimentos frequentes de medo, angústia, ansiedade com implicações diretas e indiretas na saúde mental, tanto individual como social. Umas porque adoeceram, outras porque perderam um ente querido e não houve a possibilidade de se despedirem como gostariam. Outras porque o futuro é incerto e não sabem se vão continuar a ter emprego. São tantos os fatores que nos podem pôr mais depressivos e sem energia para enfrentar o dia de amanhã. A todas elas, aconselho que conversem com alguém, que pratiquem desporto, que façam uma boa alimentação, que tentem encontrar sempre algo positivo no que acontece, olhando no fundo, para o copo meio cheio e nunca para o copo meio vazio. Caso mesmo assim, não consigam deixar de se sentir mal, a procura de ajuda junto de um profissional de saúde é indispensável. Porém, acredito que todos teremos formas e ferramentas para ultrapassar os desafios que nos aparecem a frente. Como ainda li estes dias, a vida é como um jogo de computador, não queremos passar para o próximo nível, queremos sim, ser os melhores jogadores.

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