Massa Mãe é “um baloiço entre uma homenagem e uma provocação”

Natural de Viana, mas a residir em Lisboa, Sara Inês Gigante regressou à terra Natal com uma peça teatral de autor. “Massa Mãe” apresenta a relação da atriz e encenadora com as tradições e com o legado familiar.

Inquietações, reflexões e sugestões são deixadas pela atriz ao longo da trama, que encerrou, na última sexta-feira, a 6.ª edição do Festival de Teatro de Viana do Castelo. Com a sala principal do Sá de Miranda cheia, a atriz vianense promete continuar a desenvolver projetos autorais. 

Quantos anos tem?

28 anos.

É natural de Viana do Castelo?

Nasci em Viana, embora tenha vivido uns anos fora com a minha mãe. Vivi em Macau e Moçambique, mas fiquei em Viana até ao Secundário. Estudei depois no Porto na Academia Contemporânea do Espetáculo e depois na Escola Superior de Teatro de Lisboa. Acabei por ficar por aí, porque depois da escola fiz também um estágio no Teatro Nacional Dona Maria II e fui enraizando lá o meu percurso profissional.

Como surgiu o teatro na vida da Sara?

O teatro surgiu bastante cedo, na medida em que quando era miúda fazia parte de um clube de expressão dramática com a Raquel Amorim e depois fiz parte do grupo de teatro amador de Viana e onde conheci pessoas que estudavam na escola do Porto. Acabei por tomar a decisão de fazer essa escolha.

Como caracteriza a peça “Massa Mãe”?

Este projeto surgiu da vontade de trabalhar as tradições do nosso país, não só as minhotas. Inicialmente a ideia era fazer uma pesquisa sobre as várias tradições portuguesas para tentar percebê-las, mas também questioná-las, porque há um conflito meu, interno, sobre o lugar que elas ocupam, como é que elas surgiram e os tempos mudam… Na minha opinião, há uma espécie de atualização que pode ser feita na forma como olhamos para as práticas tradicionais. Mas ao longo do processo criativo acabou por fazer mais sentido focar-me naquilo que realmente me diz respeito, ou seja, as tradições com as quais tenho uma relação direta e uma relação emocional, porque isto também parte de um amor muito grande às tradições minhotas e aos hábitos que existem na minha família. E depois como falar de tradições é também falar de legado acabo por fazer um paralelismo com aquilo que significa o legado no meu contexto familiar. Aí foco-me nas mulheres da minha família, em específico na tia Maria, onde vou fazer alguns paralelismos sobre esses dois planos. Ao mesmo tempo que vou falando das tradições minhotas e sobre as memórias também faço um paralelismo do que é isto do legado e do que deixamos a alguém. 

É uma peça de homenagem a essas raízes. Podemos afirmá-lo?

Sim. Acho que é um baloiço entre uma homenagem e uma provocação, porque há algumas coisas com as quais entro em conflito. Há uma génese muito machista e bastante patriarcal em algumas tradições. E faço questão de levantar essa poeira para podermos ter esse olhar, visão e atenção. 

A certa altura da peça, diz: “Escrevi uma petição para que os meus filhos, um dia, possam desfilar com o fato da avó Cândida”. A peça quer também trazer a debate as questões da identidade de género?

Da mesma forma que agora há um espaço maior para se falar destes assuntos. Acho que isso pode refletir-se em todas as vertentes, mesmo naquelas que são mais antigas e intocáveis. Quando faço essa questão da petição parto daí. Podíamos aceitar que uma pessoa vestida de lavradeira ou mordoma não tenha necessariamente que ser uma mulher. Ou que um casal de mordomos não tenha de ser um homem e uma mulher, porque isso significaria estarmos em pé de igualdade com aquilo que existe. Essa é uma das provocações que faço.

A peça vai levantar outras reflexões?

Eu tento fazê-lo de uma forma leve, mas também emocional. De alguma forma, eu partilho, os dilemas que também são meus. Da mesma forma que amo tudo isto também me questiono sobre estas coisas todas. A peça através do humor e da relação direta com o público tem esse lado confecional e de partilha das perguntas que fui fazendo. Uso a minha história, a minha biografia, as mulheres da minha família e a possibilidade de ter filhos e serão eles que levarão o meu legado. 

A Sara tem raízes na freguesia de Outeiro. Consegue perceber que vivências a influenciaram no seu percurso?

Outeiro tem um valor bastante forte para mim. A minha família é toda de Outeiro, apesar de eu ter nascido em Viana. Todas as práticas durante a minha infância e adolescência foram em Outeiro e aqui há uma relação muito forte com a tia Maria, que viveu em Outeiro a vida toda. Outeiro foi a minha segunda casa, senão a primeira. É ali que estão as minhas pessoas, as minhas memórias. Passei ali muito tempo e teve um valor muito forte para o meu crescimento. É uma realidade muito específica. Muito rural e isso também nos dá coisas.  

Costumava participar nas manifestações culturais de Viana, nomeadamente no desfile da Mordomia?

Nas festas de Nossa Senhora d’Agonia nunca vesti o traje de mordoma, mas fui várias vezes de lavradeira. Fui mordoma este ano nas Festas de Outeiro. E isso também é referido no espetáculo. Em miúda, era um encanto muito grande desfilar e ter essa possibilidade. É como se fosse um privilégio desfilar. Em criança já era bastante excêntrica e gostava de ter os olhos postos mim e ter a atenção do público. Para mim, participar nos desfiles também significava isso. Não participei em muitos e também falo disso no espetáculo.

O que significa trazer a peça a Viana e ao Sá de Miranda?

Isto é a cereja no topo do bolo. O espetáculo tem resultado bem em outros sítios, porque embora fale da minha história, da minha família e das minhas tradições, qualquer pessoa tem a sua família e as suas tradições. O espetáculo tem resultado muito bem em qualquer sítio. Em Viana acho que vai resultar bastante bem, porque todos vamos falar da mesma língua, na medida em que as pessoas sabem exatamente daquilo que estou a falar. Há uma probabilidade muito forte das pessoas conhecerem as pessoas de quem falo, nomeadamente as mulheres da minha família e dos espaços que eu falo. Aí as pessoas vão identificar-se mais. Por outro lado também é arriscado porque também me proponho a pensar sobre estas coisas e acuso-as de um conservadorismo. E isso também é perigoso.  

Para além de encenadora é também atriz na peça. Como é conciliar estas duas funções?

Primeiro foi difícil conciliar tudo. Mas quando decidi afunilar a pesquisa para a minha história e tradições não me fazia sentido esta história não ser contada por mim. A dada altura tornou-se bastante natural pensar no espetáculo e tive uma equipa que contribuiu muito para isto. A equipa foi uma âncora muito forte para me ajudar a perceber o que resultava melhor e o que não resultava tão bem. A dada altura era natural escrever sobre estas coisas, porque são tão íntimas e estão tão fortes dentro de mim, que se tornou bastante natural entre o que vou dizer e escrever. Sem a equipa não seria tão natural esta relação. Iria ficar mais insegura, com medo que para mim resultasse…  

Em palco está a Sara e outra pessoa?

Sim, sou eu e a Carolina, que fez a música do espetáculo e tem várias participações, simbolizando alguns dos assuntos que trago para a peça. Embora a viagem seja dada por mim, ela está a ser o braço direito desse caminho.

A “Massa Mãe” já foi apresentada em vários locais. 

Estreou em Guimarães, em junho, depois já foi apresentada em Lisboa, Ponte de Lima. No próximo ano iremos estar no Porto, Leiria, Covilhã, Funchal…

O porquê do nome?

Em termos de dramaturgia, ao longo da peça, faço um paralelismo com o cultivo do milho. Vou sempre pautando, desde o momento em que preparamos o terreno para colocar as sementes, até ao momento em que transformamos o grão das espigas em farinha. E no fim do processo todo acaba na massa mãe, na medida em que no fim faz-se a broa de milho, de onde se tira a massa mãe. A tia Maria, de quem eu falo na peça fazia broa de milho. E a última vez que fez foi a ensinar-me e disse-me que o truque era a massa mãe. Depois há uma analogia que faço com a massa mãe, que é um conjunto de bactérias que serve a broa seguinte e acho que isso tem alguma relação com o papel do legado. De nós passarmos alguma coisa aos nossos filhos, por exemplo, e algumas podem ir com algumas bactérias. 

Já tem outros projetos pensados? Quer continuar a conciliar as duas funções, atriz e encenadora?

Eu gostei muito de fazer esta experiência. De escrever as minhas urgências e de ser eu a dizê-las. Portanto, diria que o próximo projeto da minha autoria será no mesmo registo. No entanto, sou atriz e trabalho com outras pessoas e para o ano tenho um outro projeto, que não será meu. Será de outra equipa. E já estou a pensar no que irei fazer a seguir. 

Mas quer dar continuidade a estas duas vertentes?

Eu gosto da ideia de fazer muitas coisas. Da ideia de fazer coisas novas. Gosto também da ideia de experimentar fazer outras coisas diferentes, mas quero continuar a fazer projetos de autor.

Como vê o panorama cultural de Viana?

Eu não acompanho muito, porque moro em Lisboa significa estar a quatro horas de distância em autocarro. E isso dificulta que eu venha cá mais vezes do que as que queria. Do que tenho acompanhado, Viana do Castelo tem uma textura cultural bastante forte. Eu sinto que as pessoas de Viana têm interesse cultural.   

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