(11) Na Rua da Misericórdia

Author picture

O dia era primaveril, a temperatura também convidava ao passeio, mas a chuva, intensa, fazendo lembrar o velho provérbio “abril, águas mil”, não estimulava ao passeio. Enquanto conversávamos no café, à espera que amainasse, logo concluímos que não podíamos ir para muito longe, se bem que Joaquim Terroso, mais uma vez sem companhia que não fosse a nossa, foi adiantando que “abril, ora chora ora ri”. Mas pode só chorar, fomos-lhe dizendo.

Combinámos então fazer um curto périplo pela antiga Rua da Bandeira. – Ah, a Rua da Bandeira, mas apenas no que toca à Misericórdia, sim, sim, podemos ir. Trajeto curto, algo abrigado e com história. Franzimos a testa, o que admirou Terroso.  – Bom, se bem me apercebo os meus amigos não sabem que o primeiro lanço da Rua da Bandeira, que vai desta Praça em que nos situamos até ao cruzamento da Rua Major Xavier da Costa e Rua Espírito Santo, estava denominado como Rua da Misericórdia.  

Como nos viu intrigados e céticos, Joaquim sacou dos galões do seu conhecimento para, alto e bom som, dizer que a mudança aconteceu em 1867, passando então a Rua da Bandeira à dimensão que hoje se lhe conhece, definida como a maior da urbe. Com ar finório, avança na retórica. Há dias chegou-me à mão mais uma separata contendo uma comunicação sobre a Rua da Misericórdia, mais uma vez de José Rosa Araújo, que o próprio fez em conferência no salão nobre do Sport Clube Vianense, a 28 de fevereiro de 1948, aquando das comemorações desta vetusta agremiação na passagem do seu 50.º aniversário, em que tratava precisamente da rua da Misericórdia.

Sabem, e este vianense brilhante – bom, vianense/limiano, mas zangado com Viana, porque entendia que esta nunca lhe atribuiu o devido valor – abominava a alteração dos topónimos da cidade. Dizia ele que antigamente nome posto era sagrado, que o povo consagrava e defendia através dos tempos, tal com acontece com os seus usos lendas e tradições, alguns dos quais – quase todos – vêm dos confins das idades pré-históricas”. Araújo, nessa conferência ouvida e aplaudida no Nobre Salão do glorioso SCV, Club que tantas alegrias nos deu ao longo dos tempos, contristado, citou inúmeros nomes de ruas desaparecidas. Eis algumas: Rua do Corredio, Rua de Matamoiros, Travessa das Noivas, Viela da Cova da Onça, Beco do Caxuxo, etc, etc.

Avançamos e até à entada da Rua da Misericórdia, que não é mais que o início da atual Rua da Bandeira. Aqui, o nosso amigo Terroso, deitou mão, mais uma vez, da separata de José Rosa Araújo, para nos falar da igreja da Misericórdia, já que daí deriva o nome da rua que foi abatida pelos poderes. “Em todos os tempos se cometem crimes”, diz o nosso Joaquim. Tentamos justificar quem o fez, alegando que criamos a mais longa rua da cidade, a nossa Rua da Bandeira. Mas o nosso interlocutor, zangado, nem nos respondeu. Falemos da igreja, então, disse-nos. Citando de novo o José Rosa, vejam o que nos conta: Não me deterei a descrevê-la, mas quero aqui deixar bem frisado que ela fartamente e com mérito apelidava a rua. Não há em Viana templo que se avantage e para que concorresse o esforço de tantos e tão excelsos artistas. Reconstruído – como todos sabem – nos começos de setecentos e por a antiga igreja ameaçar ruína, foi o seu plano traçado pelo grande engenheiro e militar Manuel Vilalobos, o mesmo homem a cujo talento se devem, entre outras construções, a casa da Vedoria e o milagre de equilíbrio que é a escada da sacristia do Convento de São Domingos. 

Para terminar, que a leitura vai longa, citemos apenas a azulejaria que ornamenta o interior da igreja, algo de excelso, diz Terroso, emocionado. José Rosa atribuiu autoria a esta obra de arte que reveste as paredes de alto a baixo, que nunca nos cansamos de admirar, ao ceramista Policarpo de Oliveira. 

Sei que estais aflitos com o almoço, mas tende mais uns minutos de paciência para que vos diga algo mais do que nos informou Araújo: a talha foi esculpida pelo mestre Ambrósio Coelho, que talhou igualmente os altares do convento de São Francisco. 

Bom, para rematar mesmo, Rosa Araújo também nos disse que Homens da Arte como Joaquim Lopes, Alberto Sousa, Reinaldo dos Santos e Carlos de Passos se confessaram encantados com esta soma de maravilhas e sagraram o templo como o primeiro da região de Viana pelos primores que contêm.

Até à semana, Amigo Joaquim. – Então não querem almoçar comigo? Na próxima semana, aceitaremos, gostosamente. Fiquem bem. Ao longe Terroso, simpaticamente acenava em despedida.

Outras Opiniões

Os leitores são a força e a vida do nosso jornal Assine A Aurora do Lima

O contributo da A Aurora do Lima para a vida democrática e cívica da região reside na força da relação com os seus leitores.

Item adicionado ao carrinho.
0 itens - 0.00

Ainda não é assinante?

Ao tornar-se assinante está a fortalecer a imprensa regional, garantindo a sua
independência.