A crónica escreve-se sozinha

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As saudades que tive desta esplanada do café Girassol, o meu “La Closerie des Lilas”. A peripécia solitária inebria a perceção, e dei conta do que me rodeava como uma ténue água de mar num dia de verão quente, quase lisa.

O português traficado entre turistas e nativos com o sotaque minhoto disfarçado em tons bárbaros; casais apaixonados demasiado cedo, tão cedo que a vida ainda não os atropelou com o fatalismo da líbido e a sedução de umas pernas morenas brasileiras; os velhotes ensonados às quatro da tarde, a bocejar sobre um fino copo de fino; as empregadas a supervisionar a manutenção rigorosa das regras de higienização;  mulheres de meia idade a bebericar gins exóticos, rememorando uma temporada de covid-19 a que “sobreviveram”, desvalorizando os sintomas assintomáticos e expondo teses “facebookianas”, verbalizando o carácter ridículo da opinião.

Este ano tudo será diferente, aliás, tudo está em constante diferença a tudo que vivemos. Estamos perdidos porque não temos ponto de comparação e corrimão para nos agarrar e há um desamparo na “criação”.

Assim, mais do que nunca, há uma necessidade extrema da cultura que expande o alcance banal da realidade, porque não é mais uma realidade ordinária, tudo é um extraordinário a que a habituação ainda não agarrou. E se houver algum bom senso pode ser que o desprezo pelos artistas jovens cesse e se ceda uma pequena brecha à margem da dúvida.

Enfim, à parte disto tudo, a crónica escreve-se sozinha nesta esplanada. A solitude a que me exponho coloca-me sobre o manto da indiferença e da paz, onde posso ler e acabar o meu café numa tarde inteira e sair de lá com esta crónica.

Márcio Lima

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