A nova sinodalidade eclesiástica (4)

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Em anteriores artigos sobre a nova sinodalidade eclesiástica, no intuito de «fazer memória… do caminho da Igreja ao longo da história», para «encontrar as razões para voltar a fundar o caminho da vida cristã eclesial», distinguia três tempos, diferenciados, precisamente, pela sua diversa sinodalidade. O primeiro, o originário, evangélico, foi o tempo da presença humana de Jesus, revelando o Projeto de Deus para a convivência humana. O segundo, o apostólico, foi o da formação das primeiras comunidades cristãs, segundo o modelo sinodal testemunhado pelos primeiros apóstolos e discípulos de Jesus e seus imediatos sucessores, durante os dois primeiros séculos. Era sua característica fundamental a ausência de hegemonia sinodal.

 Nunca a humanidade conhecera um modelo de agregação e de convivência não hegemónico, em que as relações deviam ser plenamente fraternas, qualquer que fosse o estatuto social de cada membro. Paulo de Tarso diria: «já não há diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vós sois um só em Jesus Cristo» (Ga.3,28). Em finais do século II, o escritor romano Minúcio Félix constatava que os cristãos “amam-se uns aos outros ainda antes de se conhecerem”. Não podemos, porém, pensar que os membros das comunidades cristãs originárias fossem, nas suas relações, sempre e plenamente fraternos. Agregavam-se, precisamente, para aprender, em comum e mutuamente, a praticar esse modelo de convivência fraterna, com a dimensão transcendente revelada por Jesus, que corresponde, aliás, ao que o ser humano mais profundamente deseja, o reconhecimento próprio e amor mútuo, só alcançável na dimensão transcendental que Jesus revelou.  Critérios meramente racionais e temporais julgam um tal projeto simplesmente utópico ou louco. Os fariseus, os escribas e os pontífices do tempo de Jesus também disseram dele que era louco. No entanto, operou a maior revolução ética que a humanidade conheceu, convertendo a perversa tendência humana de domínio de uns sobre os outros. O modelo cristão de vida, apesar da sua modéstia e discrição, e das perseguições a que foi sujeito pela religião judaica, mas, sobretudo, pela racionalidade greco-romana e suas religiões pagãs, impôs-se-lhes, pacificamente e por convicção. Os princípios modernos da liberdade, da igualdade e da fraternidade humana são herança sua. O seu princípio não hegemónico corresponde às mais profundas ambições humanas.

Infelizmente, ao longo dos séculos III e IV, o modelo foi pervertido, na sequência da sua acelerada expansão. Por corresponder aos mais profundos anseios humanos, o modelo atraía muita gente e, entre ela, gente sábia e socialmente prestigiada, para as comunidades cristãs, constituídas, maioritariamente, por iletrados, socialmente sem relevo. Por outro lado, o modelo provocava reações especulativas em movimentos perturbadores de especulação teológica (docetistas, ebionitas, marcionitas, gnósticos, mais tarde considerados heréticos). A luta contra a especulação teológica desviante deu aso a que os mais letrados das comunidades ganhassem alguma preponderância no seio das comunidades, como melhores intérpretes do sentido da fé. A tentação hegemónica, por via do prestígio e honra social dos letrados, tornados líderes das comunidades, foi contaminando-as, já desde o século II e ao longo do século III, sobrepondo especulações doutrinais ao testemunho prático da convivência fraterna. A sinodalidade originária, de base, tornou-se restrita aos líderes letrados (presbíteros e bispos), nas relações entre as várias comunidades, para estabelecer entre elas uma “unidade de fé”, predominantemente doutrinal e ritual. Este fenómeno está na génese do terceiro tempo, o tempo eclesiástico, origem de uma estrutura hierárquica, cujo nascimento está já patente nas célebres cartas autoritárias dos bispos Clemente de Roma (ano 96) e Inácio de Antioquia (ano 115) e nas Epístolas Pastorais (anos 100-105), falsamente atribuídas ao apóstolo Paulo, onde já aparece o sentido de afastar as mulheres da liderança eclesial.

O “tempo eclesiástico” consolidou-se, depois, com a auto-sacralização e auto-sacerdotalização dos líderes, ao longo do século III, facto evidente nas ordenações do livro “Tradição Apostólica” (ano 230), onde os termos “ireus” e “pontífice”, indicativos da função sacerdotal (no judaísmo e nas religiões pagãs), que eram exclusivamente aplicados a Jesus, como único mediador com a divindade, surgem aplicados aos bispos e presbíteros, sem qualquer fundamento apostólico que o justificasse. Os líderes assumem assim um novo poder, o domínio do sagrado, do “sacramentum”, que secundariza os membros das comunidades, nos seus próprios carismas e direitos. A expressão grega “kleros”, significando “porção santa”, que era aplicada a todo o Povo de Deus, como agraciado por Deus, deslocou-se para a elite sacerdotal e pontifical, hegemónica. O Povo de Deus não clerical passou a designar-se pejorativamente “laikos”, povo vulgar, num estatuto de inferioridade e de mera submissão.

O clero hierarquizou-se numa ordem sacra, paralela às ordens militares romanas, de Patriarcas, Arcebispos, Bispos, Presbíteros e Diáconos, de ordens maiores, depois acrescida de outras ordens menores, subalternas, orientadas, sobretudo, para o culto (eucarístico), para a doutrinação e para a influência social. Ao longo dos séculos III e IV, a hierarquia clerical foi-se centralizando em grandes polos geográficos, como Antioquia, Roma, Alexandria e Cartago, com tendência para a centralidade imperial de Roma e Constantinopla, sendo Roma favorecida pela tradição dos apóstolos Pedro e Paulo, ali martirizados. A aliança do poder sagrado eclesiástico com o poder político-militar, desde o Imperador Constantino (313), consolidou o modo perverso de cristianização do mundo, designado de Cristandade. Com a sinodalidade monopolizada pela hierarquia, a cristianização sempre esteve condicionada por fatores de dominação política e cultural, numa cultura dominada também pelo mundo eclesiástico.

A promiscuidade entre o poder eclesiástico e os poderes ditos seculares arrastou o mundo cristão para a violência. Muitos Concílios realizaram-se em contexto violento. Os elementos deles discordantes eram ostracizados e perseguidos. A Igreja foi a soberana política e militar dos Estados Pontifícios, falsamente considerados “doação do imperador Constantino”, desde o século IX até 1870, hoje reduzidos ao Estado do Vaticano. As guerras medievais eram animadas com pretextos considerados cristãos. As célebres Cruzadas eram consideradas dever cristão. As Inquisições, desde a Idade Média quase até aos nossos dias, foram poderosos instrumentos de violência sobre as consciências e favores à estabilidade dos Estados. O clero, sobretudo após o Concílio de Trento (1545-1563), foi formado na resistência à Modernidade (condenada pelo Syllabus de Pio IX, em1864), distanciando-se, cultural e socialmente, do povo cristão, pela dogmática, pela ordenação canónica e pelos rituais.

 É inegável que, apesar de não ser conforme à simplicidade e despojamento do cristianismo originário, o “mundo eclesiástico” foi sendo o transmissor do ideal cristão, que não deixou, por isso, de estar vivo nas consciências individuais e nas comunidades, como presença efetiva do Espírito de Jesus. Mas, os graves problemas de toda a ordem, que vêm afastando os cristãos das instituições eclesiásticas, resultam do descaminho destas em relação à genuinidade do originário modelo cristão de evangelização, fraternal, comunitário, sem hegemonia. É este o objetivo do “caminhar juntos”, sinodal, que compreendemos no convite do Papa Francisco, «para voltar a fundar o caminho da vida cristã eclesial» (Documento Preparatório, nº7).

José Veiga Torres

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