A praia da saudade

Sidónio Ferreira Crespo
Sidónio Ferreira Crespo

A Maria Emília, sentada numa cadeira baloiçante, no terraço da sua casa, que se destacava dos grandes campos de vegetação que a envolviam, tendo a um topo da quinta uma mata de pinheiros e eucaliptos, seguindo-se grandes latadas de vinha e árvores de fruto, quase até ao mar, via, desse local privilegiado, uma massa uniforme esverdeada, agitadíssima, às vezes, por enormes ondulações. Preferia aquela parte da vivenda debruçada sobre o oceano, da qual acabara por fazer uma espécie de miradouro, e de onde dominava toda aquela paisagem que o seu espírito tanto amava. A imaginação deliciava-se em inventar histórias fantásticas, das quais era quase sempre a heroína. Passava horas inteiras naquela varanda a contemplar, sonhadora, o oceano que se estendia na linha do seu horizonte visual. Toda a área que a rodeava, na verdade, era de uma beleza extraordinária. As árvores, contornando campos e vinhedos, terminavam com os seus troncos endireitados muito próximo da areia da praia, que se apresentava das mais variadas cores e aspectos, conforme incidiam sobre ela os raios de sol ou as estações do ano.

Ao longe, a grande distância, divisava a serra pura vestida de múltiplas cores, rica de perfumes, opulenta de delícias e apaixonadamente acolhedora. Conjunto de montes pintados de branco no Inverno, que, cheios de neve e sol, em simultâneo, brilhavam parecendo oiro, ao mesmo tempo que prendiam, fortemente, a atenção. Na Primavera tudo era verde e a sobressaírem os seus contornos naturais, sempre fascinantes, que uma estrada aos ziguezagues cortava a montanha a florir. No Verão, no sopé, as sombras acolhedoras convidavam para saborosas merendas. Na época outonal as folhas do arvoredo, através do vento, deslizavam pelas encostas, movimentando-se entre caminhos, carreiros e valados, produzindo uma sinfonia nostálgica. No alto, a culminar, riscando o céu, grandes penhascos parecendo cair, cobertos de frágil vegetação, que se apresentavam prodigiosamente cinzelados pela natureza e, a rivalizar tudo isto, cá em baixo, com os vales pejados de beleza e planuras bucólicas, aparecia um ribeiro de água pura e cristalina, que dava abrigo a trutas e enguias, a correr, apressado, por debaixo de uma ponte centenária de granito, a caminho do mar.

Lembrava o passeio anual, no início do tempo quente, quando despertavam os amores perfeitos e resplandeciam de verde as várzeas, deslocando-se, com os pais, a uma romaria serrana carregada de costumes ancestrais, que com o andar dos tempos ainda se mantinham inalteráveis, e que se celebrava numa capelinha no cume da montanha. Abundava o mel puro que as abelhas produziam, através do pólen fecundante, que se comia num prato de latão esmaltado, acompanhado com broa de milho amarelo cozida num forno aquecido a lenha. Os favos onde o mel estava depositado num conjunto de alvéolos eram espremidos na frente das pessoas. Foguetes, música, doces regionais, cantares ao desafio ao som da música das concertinas, troca de lembranças, contrastando com a fé dos romeiros a pé ou de joelhos, cumprindo as promessas em volta da capela, alguns com a imagem da Santa venerada à cabeça ou nos braços e todos de semblante compenetrado e exaustos pelo esforço produzido.

Não gostava da praia oficial, porque se mostrava bastante elegante e arranjada, com as suas barracas, toldos e chapéus de sol geometricamente alinhados, onde as algas, os seixos, as conchas e as pedras esverdeadas pelo limo eram banidas dos visitantes. O oceano, considerava-o qualquer coisa de vivo, de palpitante. Um pouco de ser humano, com as suas cóleras, os seus sorrisos, os seus caprichos, a sua crueldade e os seus mistérios.

Anualmente, na época balnear, que coincidia com as férias grandes, deixava o centro urbano e vinha refugiar-se com os pais naquela propriedade, apreciando os trabalhos rurais e uma vasta gama de pequenas indústrias caseiras que os arrendatários desenvolviam e exploravam, ao mesmo tempo que procurava rejuvenescer o espírito nas águas salgadas da praia que considerava sua. A areia virgem, as dunas frementes, as ervas secas que se entrecruzavam, livremente, misturadas com chorões e sargaço produziam-lhe uma sedução irresistível. Dessas plantas, estranhamente reunidas, exalava-se um perfume penetrante e fresco, que se unia ao do limo e do iodo, ficando preso aos cabelos, à pele, e mantinha-se vivo, junto dela, mesmo depois de o passeio terminar, o encanto da natureza livre e maravilhosa. Ondas imensas, rendas de espuma, pequenas ondas tépidas, ruídos misteriosos, murmúrio de gaivotas, segredo das profundidades submarinas, era o que o mar lhe revelava, quando se encontravam face a face durante longas horas. Entre os dois não havia ninguém a interromper-lhes as confidências. O oceano, pudico, guardava o segredo da sua beleza. O tempo, grande mestre, no seu andar veloz, trazia à jovem a delícia das mais estranhas exaltações, nunca esgotadas e sempre novas. E ela, seguindo uma linha normal de evolução, evocava, ao ritmo das vagas, os panoramas sempre diferentes do seu pensamento, que se espantava ao tentar descobrir a vida.

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Maria Emília licenciou-se numa área ligada à agricultura. Pretendida seguir a inclinação dos pais. Ficou noiva no Estio, que culminou com o fim do curso. Uma imensa esperança nasceu no seu coração, motivada por vários factores e pela conversa, mais íntima, que entabulava com o namorado, confiando ao mar aquele segredo mais sublime. Pareceu-lhe que a tinha compreendido, dando-lhe uma resposta satisfatória, nesse momento, com uma voz embaladora a desfazer-se na areia da sua praia. O oceano foi a companhia dos dois durante os meses de férias. Davam longos passeios, perdendo-se na imensidade das areias, sendo o barulho das ondas que, muitas vezes, com aparente ciúme, interrompia as suas carícias e confidências. A esquematizarem projectos futuros, num ambiente de empolgante apaixonamento, os dias iam-se passando, tudo numa aparente felicidade e num caminhar que não parecia efémero.

Todavia, o calendário do destino ficou brutalmente assinalado. Num fim de semana, de visita à quinta, a caminho da cidade, o noivo teve um violento acidente de viação que o vitimou. Perante este percalço inesperado a vida traçou-lhe novo ritmo, juntamente com o desgosto e as ilusões sofridas.

Naquela propriedade, face ao estado penoso da sua alma, pensou fixar morada definitiva. A lavoura e o conjunto de explorações de índole um pouco industrial, dar-lhe-iam proventos suficientes. No terraço aberto sobre o oceano encostava-se, agora, com os olhos perdidos nas ondas da proximidade, nos penedos da praia e nos pinheiros que perfuravam o horizonte. Revivia o tempo passado como a querer isolar-se, teimosamente, do mundo que a cercava, pensando:

– Porque será que o destino nos obriga, muitas vezes, a transformar a vida? Porque será que uma felicidade de horas, dias ou meses, tenha de ser paga com tantas lágrimas? Tudo por causa do amor, o primeiro sofrimento, a aprendizagem do medo. Da alegria ao desespero uma pessoa torna-se adulta e o coração abre-se como uma flor ao sol.

Tornava a ver-se criança, nesse mesmo solar da praia, onde, por ironia do destino, nesta altura sofria e onde, em tempos, passara dias tão felizes. Todos os anos a traziam, pequena colegial, um pouco pálida das fadigas de um ano de estudo e do céu cinzento e abafado da grande cidade, até junto da sombra dos pinheiros, que se moviam, preguiçosamente, acariciados pelo vento. As pessoas da região conheciam bem aquela rapariga de encantadores cabelos loiros, que agora embalava um filho, fruto do seu primeiro amor, esperando por melhores dias que a vida, de certeza, lhe iria proporcionar.

Nota: Este conto, por vontade do autor, não segue a regra do novo acordo ortográfico.

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