Ainda os bailes do Clube Fluvial Vianense

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Daqueles bailes, algumas vezes, resultavam namoricos. A Maria do Rosário era muito simpática e usava camisolas encarnadas ou azuis, de malha fina, que deveras a favoreciam. Ia esperá-la, às 7 horas, quando saía do emprego na loja de máquinas de costura na Avenida e acompanhava-a até sua casa, lá para os lados do Bairro Jardim. Ficámos bons Amigos.

Já saído de Viana do Castelo, estudando em Lisboa, sempre sonhava com os bailes do Fluvial.

Sempre que podia, regressava. Sexta-feira à noite, apanhava o comboio correio com destino a Campanhã. Banco de madeira em 2ª classe que, às vezes, dava para dormir. De vez em quando, viajava na carruagem dos Correios. O Freitas, de Ponte de Lima, meu antigo colega do Liceu, trabalhava nessa carruagem. Em cada paragem, entregava e recebia cartas e encomendas. Da correspondência recebida, procedia à separação por destinos, conforme as estações que se seguiam. Carimbava e fazia registos. Fazia-o com enorme atenção, não deixando, folgazão como era, de amenizar a demorada e incómoda viagem. Em Campanhã, entrada em automotora. Ermesinde, Famalicão Nine, Tamel (às vezes), Barcelos, Barroselas e, finalmente, Viana do Castelo.

Era Sábado, de preparativos para o baile: tratar da limpeza dos sapatos no Café Américo, enquanto tomava um belo café adoçado com uma dose de açúcar apresentada num pequeno cálice de metal, servido por um gentil senhor, sereno, muito educado, que se movia com bastante dificuldade, pois sofria dos calos e joanetes, mas a quem nunca ouvi um lamento. Ouvia a sua voz apenas para cumprimentar e agradecer.

O Américo era lugar de muitos encontros de amigos, conhecidos e ainda alguns muito especiais: os meus antigos professores da Escola Primária, a Senhora D. Glória e o Senhor Professor Arga, seu marido. Era um prazer mútuo. Percebia-se quanto lhes sabia bem encontrar alunos que os admiravam e a quem muito deviam.

Benditas reguadas na mão esquerda, que tentava defender com o antebraço direito! Saí da Escola do Carmo com um sólido conhecimento de ortografia, gramática e matemática, bases fundamentais para posteriores estudos. Não esqueço, nunca, a Sra. D. Glória e o Professor Arga. Grandes Mestres.

No Domingo, o entusiasmante regresso à matiné do Fluvial. A sensação de subir as escadas e encontrar as amigas e os amigos. Recordo, com saudade e emoção, a Laura, a Leta, a Quinhas, a Raquel com o seu belíssimo perfil egípcio e olhos amendoados (no Antigo Egipto, seria rival de Nefertiti ou de Cleópatra), a Helena e as irmãs, e o grupo de raparigas da Ribeira, a Russa e as suas amigas, sempre divertidas e expansivas. Bons amigos que recordo. O Freitinhas, o Elias, exímio dançarino, o Aparício ou Dourinho (truculento e sempre pronto para sarilhos, de onde normalmente saía chamuscado, dada a sua fragilidade física), o Silvino, o Zé Anjos, o meu primo Adélio, o Hernâni, o Carlos Sousa, o Nevi. E muitos outros.

Mas o Fluvial não tinha só matinés dançantes. Era um local de refúgio de gente isolada, que ali recebia algum conforto e companhia. Era ainda um local de encontro, de convívio e de reunião de vianenses, que permitia consolidar amizades, debater ideias, aprender e trocar conhecimentos. Dois exemplos: anualmente, organizava uma belíssima viagem rio acima até à Barca do Porto. Era um evento aguardado por todos, com muita vontade de nele participarem.

Era uma jornada com muita música, dança e centrado num piquenique que todos construíam com o máximo carinho e apresentando as melhores iguarias. Em 1968, no dia 6 de Agosto, organizado por José da Conceição, o Fluvial foi palco de um espectáculo de Zeca Afonso. Presentes cerca de 200 espectadores, certamente vigiados e alguns referenciados pela PIDE.

Mais de cinquenta anos são passados. Estes clubes, de tantas alegrias, desapareceram, foram extintos, deixaram de ser procurados. A vida mudou. Em múltiplos e importantes aspectos para bem melhor. Contudo, não deixo de sentir uma certa nostalgia por se terem perdido estes lugares de associativismo popular, nos quais se cultivava um convívio saudável, solidário e amistoso.

Fernando Maciel

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