Amarga Aleluia

Sidónio Ferreira Crespo
Sidónio Ferreira Crespo

Talvez, apagando a luz – pensei – consiga dormir e tentar esquecer a dor e o desgosto. Tudo em vão. A noite passei-a a remoer. Sombria e cinzenta, muito arrastada, viera a manhã.

Levantei-me cedo e comigo, também, a obsessão. Estava, ainda, tudo tão nítido. Em cima de um móvel, manchada de lágrimas, aberta, espalmada, encontrava-se a carta recebida na véspera.

Afastando os olhos daquele pesadelo, fui até à janela, que abri, ansioso de ar e sôfrego de alento.

Numa sinfonia melancólica, chegava, ao meu pensamento, o marulhar constante das águas na levada. Na estrada, acordando o asfalto inerte, seguia, em algazarra festiva, a habitual camioneta de carreira. Os foguetes estoiravam no ar anunciando que Cristo ressuscitara. Era sábado de Aleluia! A Páscoa voltava. Neste universo do passado surgiam, um tanto reticentes, recordações da infância. O Domingo de Ramos com a sua procissão à volta da igreja. O ramo benzido que se conservava todo o ano com devoção e fervor. Os actos religiosos da Semana Santa, cada um com o seu significado e dimensão. A culminar todo este circunstancionalismo, na praça da cidade, as caricaturas de “Judas” rebentavam, lançando nos ares labaredas de fumo. A troca de folares. O pão de ló, o arroz doce, a aletria, o leite creme, os doces regionais, os rebuçados e biscoitos alusivos à quadra e tão apetitosos naquela idade. Domingo de Páscoa, dia da Cruz – O Compasso – um dia solene para as gentes do Minho. É uma festa enternecedora e Santa. Os amigos e os vizinhos visitam-se. Saboreia-se a apetitosa culinária da região regada com uma “pinga” a preceito. Os foguetes com os seus estrondos característicos anunciam a chegada do Compasso. Tudo é alegria… cor e movimento…

Impertinente e contrariado com tudo aquilo, o prurido da minha dor fechou-se dentro de mim e abriu, de par em par, outros diques da memória…

Tinha quase cinco anos. Na estação, prenhe de gente e de ruído, estava a minha tia e esperar-me. Não a conhecia, nem tão pouco lhe dava importância, se não fosse uma velha empregada dos meus pais que me acompanhava. Apertou-me com todo o amor nos seus braços franzinos de mulher e com um sorriso de meiguice desenhado nos lábios chamou-me o “seu menino”, agora órfão, devido a vicissitudes da vida.

Na minha perspicácia de criança, a partir daquele momento, compreendi que ela seria o meu faz tudo. Comecei a simpatizar, então, com aquela que para o futuro havia de ser a minha segunda mãe.

Às vezes, essa amizade esmorecia um pouco, quando espreitava os meus passos, recomendando-me, meigamente:

– Menino, saia do sol! Menino, não corra tantol Menino, não se canse! Menino… Menino…

Arreliava-me aquela enfadonha solicitude. Porque não havia de ser – pobre de mim – como os outros rapazes da minha idade? Porque não me deixava saltar à corda, pular, correr atrás das borboletas e dos pássaros, brincar com os pés nas poças de água? Amuava… Punha uma beicinha muito comprida e deixando o quintal, cabisbaixo e murcho, entrava em casa contrariado.

– Não vê que é muito fraco e não pode abusar? – Eram as palavras dela com ar de cordata reconciliação, pondo fim às minhas zangas.

Seguia-se, depois, a história de minha mãe. O seu lento agonizar de enferma durante largos meses e a sua morte na alvorada dos trinta anos. E passado pouco tempo, vítima de acidente de viação, a morte de meu pai, o que originou a mudança de residência.

Bastantes anos haviam já decorrido sobre estes tristes acontecimentos, mas a minha tia conservava-os tão presentes no espírito, como se tivessem sido realizados há escassos dias. Tantas, e de cada vez com mais pormenores me falava de minha mãe e do aspecto sempre sorridente de meu pai, na abertura a todas as circunstâncias do viver no acolhedor ambiente familiar.

E era assim que, de confidência em confidência, transparecia, abrupto e simples, no escuro da vida, todos os matizes da minha meninice.

O tempo, dobadoira infatigável, girou num rodopio rápido. Os anos passaram-se. Um dia, as histórias e os conselhos deixaram de ter quem os ouvisse. Quis levá-la comigo. Mas um atávico bairrismo enraizara-a à sua terra. Ninguém, nem mesmo o “seu menino” a arrancaria do local onde sempre habitou e onde criou um meio ambiente de aspectos imprescindíveis e inseparáveis.

As comportas da memória esgotaram-se. Lá estava, depois de ter voado de um continente para outro, manchada de lágrimas, sobre a escrivaninha, a funesta carta.

Cansada, doente, carregada de anos e de virtudes, tinha falecido a minha tia, deixando-me como seu único herdeiro.

De longe, revivendo o seu e o meu passado, apetecia-me, num misto de ternura, reconhecimento e veneração, afagar-lhe as nobres cãs e beijar-lhe as pupilas vigilantes – agora tristes meninas sem luz – que velaram o meu acompanhamento de criança até ser homem.

Nota: Este conto, por vontade do autor, não segue as regras do novo acordo ortográfico.

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