“Antigamente é que era bom”?

José Carlos Freitas
José Carlos Freitas

Os primeiros passos dados em 2019 parecem ter sido no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, de costas para o futuro e de regresso a um passado atrofiado pelo fétido e bafiento regime “Salazarento”, isolacionista, corrosivo e castrador de quaisquer opiniões contrárias ao modelo de pensamento único, dito “patriótico”, então dominante.
Um passado que julgávamos definitivamente exorcizado pela libertadora madrugada de 25 de Abril de 74, mas que afinal persiste, estupidamente estóico, no lamacento âmago de alguns “iluminados” negacionistas das infindas conquistas operadas ao longo destas últimas quatro décadas, indiscutivelmente marcadas por um extraordinário progresso económico, social e, sobretudo, de pensamento humano, hoje felizmente (ainda) liberto de quaisquer espartilhos de matriz ideológica. Podia ter corrido melhor? Claro que sim. Mas o salto qualitativo operado neste período é inegável. Não o reconhecer é obtuso, abusivo e profundamente estúpido.
Não nos iludamos. Esta acéfala, ruidosa e imbecil horda de saudosistas do Estado Novo ou do Quarto Reich nazi sempre esteve entre nós. Mas, como baratas covardes, imundas e repugnantes que são, mantiveram-se, todo este tempo, enterrados, sob o legado da revolução de Abril, em buracos escuros, decrépitos e bolorentos, à espera do sinal “divino” de um qualquer sabujo messiânico para eclodirem e reabilitarem, mais pelos argumentos da força (que lhes sobram), do que pela força dos argumentos (que lhes faltam), os mais macabros projectos “políticos” e ideológicos expurgados a custo do século XX. Ora, dada a inusitada abundância, aquém e além-mar, de novos “ungidos” do populismo, do nacionalismo, da intolerância, da ortodoxia religiosa, da antiglobalização e do dedo no gatilho, juntaram-se a fome com a vontade de comer, e as tais baratas, aproveitando tão triste mote, emergiram em força, infestando-nos o quotidiano digital com as alarvidades do costume e as ameaças de sempre.
“Antigamente é que era bom”, vomitam esses imbecis, beneficiando do alto patrocínio de uma televisão mais preocupada com a guerra das audiências do que com a decência moral ou o rigor histórico a que estão obrigadas, numa esforçada tentativa de banalização do fascismo através da apologia das suas pretensas virtudes, ignorando a profunda miséria a ele associada. “Não havia corrupção” – mas também não havia a possibilidade de o sabermos, se houvesse – e os cofres do Estado estavam “cheios de ouro”, embora tão luzidio quanto inconsequente. Mas também tínhamos fome generalizada, que corroía os enfezados corpos famintos das nossas crianças e idosos, privados de pão para a boca, de roupa para o corpo e de dignidade para a alma. Hoje, quatro sardinhas não chegam para um. “Ontem”, uma sardinha chegava para quatro. Mas antigamente é que era bom! Tínhamos as colónias africanas, infinito manancial de riquezas materiais conquistadas à custa da miséria moral e da subjugação dos seus povos nativos, mas também tínhamos taxas de analfabetismo brutais e índices de mortalidade infantil terceiro-mundistas. Até Salazar morrera como vivera, pobre e humilde, como humilde e pobre era o povo que ele deixou. Grande herança…
Tínhamos tudo, sem ter rigorosamente nada. A prioridade era apenas a sobrevivência, frequentemente conseguida à custa de um aguado caldo de farinha de pau, onde a ausência de qualquer “presigo” era a regra. Tudo teria sido perfeito, não fosse evidente a imperfeição de tudo. Mas, se “antigamente é que era bom”, e na impossibilidade de fazer voltar o soturno ditador, façam-nos um favor: vão ter com ele…

(Imagem: “Valores, Ética e Responsabilidade”)

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