As meias sem pé

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Hoje, muitos jovens não imaginam o que outros, na sua idade, passavam em tempos distanciados por cinquenta e mais anos… Uns para fazer aquilo que gostavam, outros para fazerem frente às dificuldades da época.

Corriam os célebres anos 60, época do make peace not war, da liberdade, do amor sem limites, dos hippies, do primeiro festival de música em Vilar de Mouros, criado em 1965 por António Augusti Barge. Mas foi em 1971 que se produziu em Portugal a grande edição do Festival. Este clima de paz, amor e liberdade fez com o que o Vilar de Mouros de 1971 fosse considerado o Woodstock português, arrastando multidões que se deslocavam a pé, à boleia, de carro, comboio ou de avião e que chegavam aos magotes de todo o país, até mesmo do estrangeiro.

Ao ler uma crónica do António intitulada “Buraco na peúga”, veio-me à ideia os meus tempos de escola, em plenos anos 60, em que três dos quatro filhos de meus pais frequentavam anos de escolaridade bastante próximos o que se revelava bastante difícil.

Nesses tempos, de que me orgulho bastante, a ginástica era levada a sério, e obrigava ao traje a rigor, onde nem sequer faltava o emblema da mocidade portuguesa. Os nossos professores eram extremamente rigorosos com o equipamento e, como tal, passavam vistoria às hostes com um olhar de RX. Na camisola branca, não podia faltar o dito emblema; os culottes brancos por baixo da saia-calça de sarja; sapatilhas brancas, todas iguais e meias igualmente brancas; umas de um branco mais imaculado que outras, mas ninguém estava dispensado de as usar. E, aqui começa a saga. A minha doméstica mãe, com toda a sua escassez de dinheiro, apesar da sua boa vontade, tinha muitas dificuldades em conseguir especialmente no inverno, ter meias enxutas e em boas condições para atender às solicitações da disciplina. Cada um de nós tinha duas aulas semanais de ginástica; ora atendendo a que eram três os consumidores de meia branca, a tarefa tornava-se complicada. Como tal, sempre que se rompiam meias, a D.ª Ângela dava voltas à cabeça e à bolsa para as substituir, o que nem sempre era fácil, tendo em conta que tinha quatro rebentos a estudar.

Um belo dia, por sugestão do meu irmão mais velho, foi decidido não deitar fora as meias rotas, mas sim criar um stock, às quais se cortaria a ponta, até mais ou menos meio do pé, por forma a enfiar-se a sapatilha e parecer que tudo estava “nos conforme”. Deste modo, se resolveu o problema das faltas de material em casa e na escola. Na altura, pensamos seriamente em montar uma fabriqueta de polainas, mas o mentor da ideia, teve outra ainda mais luminosa e foi para eletricista.

Hoje, nem eletricista nem designer de polainas, porque o céu não necessita destes técnicos (está sempre iluminado), às vezes, mesmo à noite. E polainas para quê? O Céu, não é frio, é um lugar aprazível e caloroso.

Lúcia Ribeiro

Professora do Ensino Básico e Secundário, aposentada

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