Cravos de abril

A. Lobo de Carvalho
A. Lobo de Carvalho

Os cidadãos que se encontram na casa dos cinquenta anos não se lembrarão daquilo que foram os primeiros anos da revolução chamada dos cravos de 1974, mas os mais avançados na idade – naquela altura já adultos – ainda terão na memória o clima social que então se vivia. Para fugir um pouco às considerações da política actual e proporcionar alguma distracção, deixo aos meus leitores dois ou três episódios para digerirem de forma descontraída, nesta época de férias, que se passaram comigo.
Na minha actividade profissional estive directamente ligado, de Julho de 1975 a Setembro de 1979, ao controlo de passageiros na Fronteira de Valença, a mais movimentada do país, representando, no cômputo geral, um movimento superior ao conjunto das outras fronteiras terrestres todas juntas, segundo as estatísticas. Era eu, então, comandante do Destacamento da Guarda Fiscal naquela fronteira, uma função muito desafiante (e invejada por muitos, não só pela visibilidade mas também por outras razões óbvias), face aos frequentes problemas a exigirem soluções imediatas.
Vivia-se, na altura, o mais quente ambiente revolucionário, o chamado PREC, com as forças partidárias a lutarem desenfreadamente para conquistarem o seu espaço político e social. Quando iniciei funções na Fronteira, em 22 de Julho de 1975, foi exactamente no período da governação de Vasco Gonçalves, um coronel do Exército nomeado primeiro-ministro, com ideias políticas retintamente de esquerda, e que lutava intensamente por uma mudança radical da sociedade. As Forças Militares da época sentiam-se todas poderosas, porque eram elas que mandavam no país, sendo comandadas nos seus diversos patamares por oficiais extremistas de esquerda, já que os moderados tinham sido saneados ou estavam encostados, com algumas excepções, de recordo Ramalho Eanes, Passos de Esmeriz, Pires Veloso e outros. O ambiente social era explosivo, como se lembrarão os mais velhos, e as pessoas viviam apreensivas quanto ao futuro. A Região Militar do Norte era comandada pelo Brigadeiro Corvacho (quem, entre os adultos da época, não se lembrará desta figura?), sendo Otelo Saraiva de Carvalho o oficial general comandante operacional do continente (COPCON) que mandava fazer prisões indiscriminadas mediante uma simples e sempre maldosa denúncia.
Foi neste ambiente revolucionário de esquerda que “caí” em Valença e, como era militar e os militares eram senhores do poder, logo fui apelidado de gonçalvista e comunista em certa imprensa, a que deu especial ênfase um jornalista do Porto quando lhe foi exigido que pagasse os direitos aduaneiros de quatro pneus novos que trazia a rolar na sua viatura ao entrar no país, já que à saída para Espanha chamou a atenção com o seu comportamento belicoso e, casualmente, observei que os pneus se encontravam gastos. Vociferou, mas teve de pagar à Alfândega! Depois veio a vingança ao adjectivar-me com tudo aquilo que nunca fui nem sou, mas que suportei descontraidamente.
Um dia de Verão desse ano de 1975 apareceu na fronteira uma equipa de dois oficiais uniformizados (um major e um capitão), que diziam pertencer ao gabinete do primeiro-ministro Vasco Gonçalves. Sem pedirem autorização à Alfândega nem à Guarda Fiscal, resolveram colar propaganda revolucionária no edifício fronteiriço e interagir com os passageiros, tentando doutriná-los. Como o director da Delegação Aduaneira demonstrou algum embaraço (recorde-se que os militares é que governavam o país), abeirei-me do major e questionei-o se trazia alguma credencial para aquele efeito ou se o General Comandante-Geral da Guarda Fiscal tinha dado autorização para tal. Respondeu-me com sobranceria e então, na minha qualidade de comandante local da Guarda Fiscal, e com o apoio incondicional do Chefe da Delegação Aduaneira, obriguei-os a retirar toda a propaganda, ao que tiveram de obedecer, não sem ameaças à minha continuidade naquelas funções, coisa que não me ralou, porque apenas cumpri o meu dever, como se impunha. Um dos panfletos dizia “força, força, companheiro Vasco”!
Noutra altura desse mesmo ano difícil de 1975, militantes de um partido político deslocaram-se em grupo bastante numeroso para a área da fronteira, e, sem mais nem menos, e com evidente agressividade, começaram a exigir aos passageiros para abrirem as malas das viaturas. Alegavam que era para defenderem a revolução e ver se havia contrabando de armas. Perante aquele abuso, reuni alguns guardas armados e acabámos-lhes com a ”operação”, detendo o chefe do grupo até ao dia seguinte para ser presente no Tribunal. Durante a noite não faltaram os muitos telefonemas do partido a que pertencia, desde Lisboa, com ameaças e exigindo a sua libertação, mas não cedi, e mais uma vez fui alvo de ameaças, que não resultaram.
Naquela época as fronteiras emanavam um apetite especial, quase doentio, pelo seu controlo. Recebíamos denúncias, ordens e contra-ordens das mais diversas entidades, sem nenhuma regra. Vinham do gabinete do primeiro-ministro, do COPCON, Região Militar Norte, entidades policiais e outras. É evidente que tudo isso era remetido para o Comando-Geral da Guarda Fiscal, única entidade a quem devia obediência e onde havia uma hierarquia que respeitava religiosamente. Por isso é que só fui transferido para outras funções quando quis e para onde quis. Para quem não se lembra, recordo que a Instituição “Guarda Fiscal” tinha sido incumbida pelo Movimento das Forças Armadas para controlar todas as fronteiras, missão que cumpriu inteiramente.
Para terminar, caros leitores, conto-vos outra, mas que se passou no aeroporto de Lisboa em 1974. Um transmontano, muito endinheirado, e com receio de ser objecto de denúncia por invejosos, vestiu-se com uma roupa andrajosa, muito suja e exalando um cheiro pútrido, escondendo uns milhares de contos. Apresentou-se no aeroporto para embarcar para o Brasil, sabendo de antemão que os passageiros eram quase sempre revistados. O fedor que exalava era de tal ordem insuportável, que toda a gente fugia dele e permitiu que nem as autoridades aduaneiras se aproximassem, deixando-o embarcar. No avião até houve desmaios, pois o cheiro nauseabundo era terrível, e, no desembarque, no Brasil, as autoridades não ousaram sequer controlar a sua bagagem, assim tendo conseguido pôr o seu dinheiro a salvo!…
Estimados leitores, espero ter contribuído, um pouco que seja, para a vossa descontracção nestes dias de férias, fazendo recuar no tempo os mais avançados na idade para recordarem o período revolucionário, e dando a conhecer aos mais novos aquilo que a História não conta, através desta crónica “Cravos de Abril”.
Excedi largamente o espaço, mas espero a compreensão e boa-vontade do senhor Director do Jornal para a publicação por inteiro.
Boas férias para todos, bem como para a Direcção e trabalhadores do nosso Aurora.

(Foto: Alfândega de Valença – “Minho Digital”)

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