E tudo correu bem

Manuel Quintas
Manuel Quintas

Vinte de agosto. Vai há quarenta e muitos anos. Era dia da Senhora da Agonia e hora da procissão ao mar. E entre a multidão que se encontrava no Cais da Ribeira, também estavam os meus saudosos amigos Amílcar Neto, clínico desta cidade e Padre Isaías, Prior de Darque. E aconteceu que uma incauta provinciana, ao saltar para o barco, caiu na água e foi de viagem até ao fundo. Houve muito alarido, muita consternação, muita apreensão, mas nenhuma decisão. Felizmente, porque era dia de procissão ao mar, estava lá também um grupo de rapazes uniformizados que eram os pescadores encarregados de fazer companhia à Senhora da Agonia durante a procissão. E foi um desses rapazes que, calçado e vestido, mergulhou até ao fundo da doca para regressar com a náufraga.

E as massagens médicas foram imediatas; Amílcar Neto obrigou a senhora a borrifar toda a água engolida contra vontade até abrir os olhos e retomar a respiração. Um carro ou ambulância, já não recordo, correu para o hospital e pronto. Pronto. Recuperou-se uma vida. Valeu a pena. Valeu a pena porque o melhor da vida é mesmo a vida. Mas, ainda no local do acidente, o Dr. Amílcar Neto, voltado para o marinheiro molhado e sem cara de festa, dizia-lhe com calor de felicidade: – Herói! Fostes um valente! Salvaste uma vida. Parabéns! És um bravo! E, com todos estes louvores e outros que já não recordo, o rapaz, que por sinal era gago, viu-se obrigado a falar. Ele era gago mas deu bem para entender: Eu… eu… só… só… que… queria sa… sa… saber quem foi o fi fi … filho da … uta que me… me… empurrou…
Deu mesmo para entender.

Dali em diante, o meu querido Padre Isaías pedia-me sempre para não embarcar na procissão; quase me pesa a consciência de nunca lhe ter feito a vontade.

E quando passo no cemitério da Ordem Terceira e leio o nome do médico Amílcar Neto, olho para o céu e rezo desta maneira: – Senhor, eu queria sorrir para ele e abraçá-lo, mas prefiro que me conserves aqui com saúde para recordar as peripécias belas da minha vida e as da vida dos outros. Eu percebi que, acima da vida, só a vida, e que o melhor da vida é mesmo a vida. Percebi que a água, mesmo que seja do Cais da Ribeira, não é só molhada.

E também percebi melhor a oração do credo que me leva a pronunciar mais convictamente: Creio, Senhor, eu creio na vida eterna, que o mesmo é dizer na eternidade da vida. É o mesmo que afirmar que para aquela náufraga a vida não acabaria no Cais da Ribeira de Viana do Castelo se as coisas dessem para o torto.
E ponto final.

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