Epidemia de ignorância…

José Carlos Freitas
José Carlos Freitas

Indiferente, como sempre, a tudo o que se passa “cá em baixo”, a Terra continua a girar teimosamente sobre o seu próprio eixo, presenteando-nos diariamente com o sol e a lua, o dia e a noite, a luz e a escuridão, num ciclo que não termina. Mas se a Terra gira sobre ela própria, a vida terrena tem girado em torno de um problema que, sendo microscópico, se replica e dissemina a tal velocidade que já é do tamanho do mundo. Mas as razões que viram este mundo do avesso não se esgotam nos lugares-comuns anunciadores da pandemia de Covid-19 que vai monopolizando a ordem do dia. “Afinal havia outra”, cantava a Ágata. E há mesmo.

Há mais pandemia, para além da pandemia original. Há uma outra “pandemia” – que potencia os efeitos da primeira -, que me preocupa tanto ou mais do que a original, até porque para essa não há antídoto que a anule ou tratamento que a debele. Uma pandemia também crescente, também letal, também de difícil cura, motivada não por um agente patogénico “qualquer”, mas por uma surreal derivação dos princípios de racionalidade, de bom-senso e de ponderação que nos caracterizam enquanto seres evolutivos e evoluídos (julgávamos nós). Uma pandemia de ignorância, de ortodoxia e de confronto permanente, assente em dogmas, factos e certezas que só existem num universo alternativo àquele em que, queiramos ou não, todos vivemos, e que faz do delírio e do complexo de perseguição a sua indelével marca.

Numa era marcada pelas fake news, pelos “factos alternativos” e pelo absoluto desprezo pela verdade e pelos factos que a sustentam, inaugurada pelos “aiatolas” ultraconservadores e quadrados, desprezíveis e boçais Trump, Bolsonaro e seus leais quejandos, não é de estranhar a avalanche de delirantes teorias da conspiração disseminadas até à exaustão por uma crescente horda de fanáticos e negacionistas primários cuja função é, acima de qualquer outra, encher as caixas de comentários das redes sociais de um surreal lodo retórico tóxico, visando a manipulação dos menos informados.

A trama é sobejamente conhecida: a Covid ou é um logro, ou foi forjada pelas “elites”, subentenda-se, por Bill Gates e George Soros, que, em conluio com políticos pedófilos, corruptos e adoradores do diabo oriundos do espectro político de esquerda – sempre de esquerda -, se reúnem secretamente para gizar um plano que lhes permitirá dominar o mundo. Que plano? A própria vacina, que conterá um chip que será activado pelas redes 5G, e nos transformará numa espécie de zombies telecomandados, logo facilmente escravizáveis. Não se ria, é literalmente isto. Outros, sem mostrar a mais pequena evidência, asseguram estarmos perante um movimento absolutista global de manipulação e controlo das populações, que vivem já oprimidas sob o jugo de uma ditadura (sempre de esquerda, mesmo em países de governos de direita) que lhes castra as liberdades e os condena à indigência eterna – uma nova Venezuela, garantem. Enfim…

Há inúmeros outros, mas o uso obrigatório de máscara é o mais paradigmático exemplo dessa pretensa tirania, reduzindo-a a mordaça que não é nem pretende ser. Sim, é claro que a evidência científica respalda os inequívocos benefícios do seu uso como meio de contenção da doença, mas essas luminárias não se deixam enganar pela verdade, pois para eles a ciência é obra do diabo – porquanto interfere nos desígnios divinos -, e facciosa – porque contraria a sua verdade -, sendo, decorrentemente, reduzida a mero braço armado da tal cúpula conspirativa, por isso, um alvo a abater. E é falacioso o recorrente argumento do direito constitucional à liberdade de escolha ou de acção, pois esse direito cessa sempre que colide com o meu direito à preservação da minha própria vida. Qualquer cidadão sensato entenderá que entre o direito à liberdade de escolha ou acção, e o inalienável direito à vida, prevalece sempre este último. A não observância deste equilíbrio basilar de direitos é pura subversão de tudo o que a sociedade moderna construiu sobre os escombros da lógica medieval, onde tantos sonham voltar.

“Não somos um rebanho de carneiros como vocês”, gritam. Mas são. São carneiros irracionais, pois só um carneiro irracional distorce uma mensagem clara e factual que visa exclusivamente a salvaguarda da saúde pública, e nega qualquer facto que não corrobore as suas presunções pseudocientíficas, tratando as autoridades de saúde nacionais e mundiais como organizações terroristas. Espero que, quando adoecerem, se mantenham coerentes, e recusem qualquer tratamento. Aí perceberão, talvez, que a ignorância mata, talvez mais que a própria Covid…

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