Era uma vez um cidadão

Natacha Cabral
Natacha Cabral

Caros leitores, vou contar-vos uma história na qual, talvez, alguns de vocês ou vosso conhecido se possam identificar.

Era uma vez um cidadão que vivia em Portugal. Esse cidadão provinha de uma família muito humilde e, desde muito jovem, foi forçado a abraçar o trabalho para poder ajudar os seus pais, os seus irmãos e a si mesmo.  Com o passar dos anos, como todos nós, foi cometendo erros aqui e ali, caindo em algumas armadilhas, encontrando becos sem saída, e pondo as mãos na cabeça devido a algumas escolhas. Ainda assim viveu bem, pois criou a sua própria família. 

Com o passar do tempo, en-velheceu, mas não como era suposto ser após 40 anos de trabalho e de descontos honestos. Era suposto estar a viver uma vida apaziguada, de sossego, após tantos esforços.  

Porém, quer a sociedade que o pobre seja julgado, e sejamos realistas, quem não gosta de as-sistir a um bom drama? Um dia este cidadão perdeu tudo o que havia juntado. O lar desmoronou, o trabalho acabou, a saúde de-teriorou-se, o dinheiro sumiu. E eis que chegou o coletor, vestido no seu traje preferido, bateu à sua porta muito orgulhoso e disse: “Venho por este meio cobrar a sua dívida financeira. Será exposto um cartaz na porta do seu prédio que a partir deste momento, você é um devedor e para que todos o possam julgar sem menor piedade. Assim cumpro o meu dever.”

Esta é a história de um pobre cidadão. Honesto. Humano. Feito de pele e osso, como todo e cada um de nós. Se ser Humano e viver fosse tarefa fácil, então não haveria problemas, não seriam cometidos erros, não haveria espaço para a aprendizagem. Mas ser Humano e estar vivo é tarefa dura. Requer coragem, mestria, humildade e sensibilidade, resiliência e saúde, e às vezes, uma gota de sorte. Não sei muito bem até que ponto nos podemos considerar seres alta-mente inteligentes, pois dá-me a impressão que ficámos, algures, presos no passado. Um passado distante, imperativo, inquisitivo, julgativo e um tanto ou quanto, impiedoso. Sinto que vivemos ainda numa espécie de regime feudal, onde o rei açambarca, o pobre trabalha e o coletor recolhe. Mas, não era suposto termos evoluído de mentalidade? Ou iremos para sempre ser, na grande maioria, “o pobre que termina em último?”

Enquanto vou vivendo, já vi mui-ta injustiça. Já vi muito honesto a pagar caro, assim como assisto a muito rico corrupto a passear de peito feito os Mercedes velozes.

E não. Não sou contra a riqueza, do mesmo modo que não sou contra a pobreza. Infelizmente na vida, há sempre o reverso da moeda, e quer queiramos quer não, se há o branco, também terá de haver o preto e nem tudo termina em histórias coloridas.

Só não entendo uma coisa, que é a moral de toda esta história: por-que razão é que o coletor não cola os mesmos cartazes à porta dos milionários que cometeram crimes financeiros graves ou que também declararam falência? Isto leva-me a crer que não estamos a discutir sobre o valor de uma vida humana, mas sobre uma posição social, onde o dinheiro define quem eu sou, quem tu és, quem nós somos. Define até, o nosso direito de andar por cá de forma condigna. Pior, define sermos julgados de forma nua e crua pelo vizinho do lado, que é exatamente composto pelos mesmos princípios: por pele e osso, por erros, por tro-peções e por renascimentos. Há muita coisa que me custa perceber, ainda que lhe entenda a existência. Assim como há muita coisa errada a acontecer neste país vezes sem fim, que não vê a hora da mudança.

Já estou como uma cronista que escrevia num jornal conhecido um excelente texto quando dizia que os portugueses parecem ter prazer na tristeza, e que é quase uma obri-gação termos uma cara infeliz no dia-a-dia, caso contrário, não es-tamos “bem”. É, a miséria adora com-panhia, mas será ela feliz?

Vou-me perguntando, enquanto ando de um lado para o outro, quan-do será que finalmente chega o dia em que a humanidade entende que há para todos, que somos um todo, que o dinheiro é apenas um pedaço de papel e que é o amor que nos faz evoluir e ascender a nível mais maduro. Não são os cofres, nem os orgulhos, nem os egos inchados de uma falsa sensação de poder.  

Prefiro deixar-vos a pensar o que será de nós quando os cofres esvaziarem. E, assim, era uma vez um pobre que, aos 70 anos e após 40 anos de trabalho leal e dedicado, lhe vê retirado aquilo que de mais valioso poderia alguma vez experienciado: tempo.

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