História de Portugal sem estórias da Carochinha

José Carlos Freitas
José Carlos Freitas

À boleia da muito presente (e sempre oportuna) discussão em torno da abjeta estratificação e diferenciação racial subitamente exacerbadas pela eclosão dos novos partidos e movimentos de “direita”, têm-se dito e escrito barbaridades várias, mas todas elas de inenarrável conteúdo e imprevisível alcance. Barbaridades vindas não só daqueles que asseguram que a questão é um “não tema”, porquanto tradicionalmente não existe em Portugal evidência de discriminação racial estrutural, mas também dos outros que, legitimamente discordando dos primeiros, amplificam o problema, distorcendo as suas causas, a sua dimensão, as suas formas de manifestação e, em decorrência, as suas potenciais consequências sociais.

Neste campo, e como se afigura óbvio, nem tudo é negro como uns pintam, mas também não é necessariamente branco como outros garantem. Há sempre um espectro de cor intermédio em que, felizmente, se enquadra a esmagadora parte de nós: reconhecemos e valorizamos o problema, percebendo-lhe a sua real dimensão, mas sabemo-lo circunscrito a uma pequena percentagem de imbecis, e por isso de alcance (ainda) muito limitado. É, pois, tão errado e abusivo dizer-se que somos todos racistas, como é pueril afirmar que em Portugal não há racismo. Entre o oito subestimado e o oitenta hiperbolizado há umas largas dezenas de outros números, e é algures entre eles que se encontra a razão, nunca nos extremos.

Um claro excesso frequentemente recorrido pela trincheira daqueles que afirmam que Portugal é intrínseca e historicamente racista é a evocação descontextualizada dos “gloriosos” tempos da nação imperial e do seu território ultramarino. Nesse período, e conforme os factos históricos consagram, é verdade que os nativos dos territórios ocupados eram fatalmente subjugados pelo “Homem civilizado” e reduzidos à condição de meros “indígenas” ou “selvagens”, estando-lhes vedado o usufruto de quaisquer direitos, por mais elementares que fossem. Existiam somente enquanto seres menores e como tal eram tratados, com absoluto desprezo e total ausência de compaixão pelo seu incomensurável sofrimento.

Essa era, obviamente, uma conceção profundamente desumanizada da condição humana, embora normalíssima à época e, logo, perfeitamente aceitável. Hoje, igual comportamento seria um flagrante atentado aos direitos humanos mais básicos. Mas transpor para esse soturno passado os padrões comportamentais modernos e as balizas civilizacionais, éticas e morais do presente, e julgá-lo à luz do que hoje somos e pensamos, é tão absurdo quanto achar que hoje deveríamos impor o mesmo modelo social de então, distinguindo direitos e deveres de acordo com a pigmentação da pele. O pensamento humano evolui, e “hoje” só somos o que somos, porque “ontem” fomos o que fomos. O presente não existe sem um passado…

Diz-se amiúde que “um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”. Mas pior do que não a conhecer é, conhecendo-a, ousar desprezá-la ou, mais grave, cair na arrogante pretensão de a moldar às nossas convicções, adulterando ou apagando factos, impondo manipulações e branqueando atrevidamente a herança secular recebida. Por mais que nos desagrade, o passado da nação e a história que sobre ele se conta são património nacional imaterial, estanque e impermeável a quaisquer mutações convenientes a uma qualquer causa. A história, portanto, não se reescreve, porque tal seria a sua mais acabada antítese conceptual. Nem se apaga. Evoca-se, estuda-se e perpetua-se como marca indelével que é no lento processo da evolução de qualquer povo.

Foi exatamente nesse “pecado capital” que o deputado do PS, Ascenso Simões, caiu, ao sugerir a demolição de monumentos nacionais evocativos dos descobrimentos portugueses (e do Estado Novo), como o Padrão dos Descobrimentos ou os brasões florais da Praça do Império. Como que se a história de Portugal colonial se apagasse uma vez tombada a última pedra. Pretenderia o senhor deputado, através de tão peregrino dislate, marcar uma posição na justa e oportuna luta contra a discriminação. Mas o que conseguiu com o radicalismo da proposta foi um efeito subversivo que não atinge só o proponente, mas sobretudo a causa que visava defender, enfraquecendo-a e ridicularizando-a. Pelo caminho emprestou novo fôlego à extrema-direita populista e nacionalista que, oportunista como sempre, aproveitou a deixa para se (re)afirmar pela “defesa da História de Portugal contra o sistema que a quer apagar”. Bonito serviço.

Ascenso Simões perdeu a cara e, com ela, perdeu também a causa. Que nos sirva de lição: a História de Portugal quer-se íntegra e factual, sem “estórias da Carochinha”.  Goste-se ou não dela…

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