Identidade e viagem

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Diz-me com verdade e sem rodeios “Quem és? Donde vens? Fala-me dos teus pais e da tua cidade.” Estas perguntas ainda ecoam na cidade, sopradas pelo vento e aportadas na doca, destroços da viagem de Ulisses contada por Homero nos cantos da Odisseia.

Poderia responder que sou Aurora, a que cedo desponta, a do nascer do dia, do romper da manhã, a Aurora de róseos dedos. Ou que sou Lima, aquele que atravessou o esquecimento como no mito do rio Lethes, um dos rios do Hades, reino dos mortos. Quem tocasse as minhas águas cairia no completo esquecimento. Também sou um instrumento de limar, não nos esqueçamos: na Divina Comédia de Dante, estou no lugar do purgatório para que as almas se purifiquem e alcancem a verdade.

Talvez possamos aventurar-nos a pensar o impensável, talvez quando me esqueço de mim, quando me disfarço, seja o preciso momento onde me posso lembrar, e essa lembrança envia-nos sempre para uma promessa, para um futuro. Talvez te tenha sucedido aquela estranha mas doce sensação de um momento feliz em que te expandes e dissolves no espaço e simplesmente és.

Ulisses, tendo vagueado em desespero pelos mares desconhecidos, Ulisses de mil ardis, que se metamorfoseou, atento, faro apurado para resistir às seduções que o fariam esquecer o seu regresso a casa onde a sua família amada o esperava. A sua coragem mede-se pelo seu sofrimento, pois nenhum sofreu como Ulisses sofreu e aguentou. Nunca com os olhos vi eu nada que se comparasse com o amável coração do sofredor Ulisses. Fundamental, o motor desta astúcia, é o seu amável e terno coração.

Talvez quando digo “eu sou eu mesma”, “eu sou autêntica”, possa estar presa ao mastro do navio pelas vozes das sereias que nos embalam e seduzem, por uma ideia falsa e rígida de pensar. O que hoje me distrai? O que me ilude? Aventuremo-nos com olhar de garça, atravessando o medo com coração amável. Sim, entre os homens não há ninguém que não tenha nome.

“Resolução, resolução uma vez, que sem resolução nada se faz”, diz o padre António Vieira, no sermão de quarta-feira de cinzas. Se desejamos começar outra vida, comecemo-la agora. “Comecemos de hoje em diante a viver como quereremos ter vivido na hora da morte. De vinte e quatro horas que tem o dia, por que se não dará uma hora à triste alma?” Deixa-nos quatro pontos de consideração: Primeiro: quanto tenho vivido? Segundo: como vivi? Terceiro: quanto posso viver? Quarto: como é bem que viva?

Penélope, esposa de Ulisses, estava deitada sem ter comido, refletia sobre a situação do seu filho. Então a deusa Atena enviou um fantasma para junto dela para que desistisse do pranto e do choro. Disse-lhe: “Os deuses que vivem sem dificuldades não querem que tu chores nem te lamentes, pois ainda regressará o teu filho. […] Tem coragem: não sintas demasiado medo no teu espírito”. Quando o fantasma desapareceu, misturou-se com o sopro do vento e Penélope acordou. Sentia o coração reconfortado, “ao seu encontro no negrume da noite viera uma clara visão.” (canto IV). Afinal o rio Lima não é o rio Lethes, lembramo-nos do teu nome, Aurora do Lima.

Vânia Ribeiro

Atriz e diretora artística do projeto Ariadne.

Psicóloga e hipnoterapeuta no Centro Maispessoa

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