(III) – O ingresso no mundo do trabalho… e do ócio

Author picture

Entretanto, prova notória de que o Zé Amorim não nasceu para trabalhador do comércio, o primeiro emprego que ele procurou, nesse mesmo ano, foi na indústria: na Fábrica de Louça da Meadela, como artífice. Aí o desenhador exímio que ele sempre foi aprendeu a pintar e, inclusive, a cozer a porcelana, talentos que a vida lhe iria dar o ensejo de evidenciar noutras paragens. No ano seguinte, 1957, todavia, arranjou uma colocação mais de acordo com os seus créditos escolares, a de ajudante de oficial de diligências no Tribunal Judicial da comarca local. No entanto, a música nunca saiu do seu programa de trabalho: ei-lo de viola em punho, num duelo vocal amigável com o Elias Brull (Felito), no final dessa década, a animarem um lauto piquenique no Barco do Porto, com o grão connaisseur Amadeu Costa, no júri improvisado, a impor silêncio ao respeitável público (isto só para não dizer “à maralha”).

Uma forma de intervenção originalíssima que ele cultivou por essa altura, em duo com outro ritmista nato, o Chico Mauzaria Queirós, um dos veteranos do primeiro curso da Escola Comercial, foi a serenata rústica ao luar (mesmo sem lua!) à moda de Coimbra; os dois pândegos, escoltando um amigo ou conhecido enrolado num projecto de namoro para os lados da Abelheira, Meadela e outras redondezas, iam à tardinha, com alguns admiradores e acolhendo curiosos, plantar-se debaixo da janela ou em frente à casa da desejada, prometida ou fosse lá o que fosse e punham-se a tocar e a cantar modinhas à desgarrada, com o apaixonado a fazer que também fazia… até tudo acabar, noite fora, nos comes e bebes da praxe ou, pelo menos, sempre, nos copos, habitual cortesia deste. Mas não é tudo. Na verdade, para um varão com tais atributos, nado e criado na capital nacional do folclore, seria imperdoável não fazer também uma perninha na actividade folclorística. E foi isso mesmo que o Zé fez: entrou para o rancho folclórico de Santa Marta de Portuzelo, nesse tempo em que no naipe de teclas pontificava o renomado acordeonista (e também fotógrafo-repórter consumado) Manel Fontes, o meu primeiro mestre de trabalhos manuais no ciclo preparatório, que no início da década tinha fundado o inolvidável Quarteto Jazz Fontes. Melhor centro de estágio para um tocador-cantador superdotado que o de Portuzelo não havia então em todo o Alto Minho!
Curiosamente, da experiência do Zé António nessa entusiasmante actividade associativa eu próprio viria a colher também apetecido fruto. Por meados da década ’50, o Grupo Folclórico de Santa Marta passou a organizar anualmente um festival internacional de folclore, integrado na Romaria da terra, que tem lugar no segundo domingo de Agosto. Cedo me apercebi, teenager a amadurecer, de que esse evento abria óptimas oportunidades de contacto com rapazas (passe o galeguismo) doutras nacionalidades, em geral mais desinibidas do que as nossas conterrâneas; pude assim fruir dalguns namoricos-relâmpago, tendo chegado a estender a visita guiada por mim a Viana até à citânia de Santa Luzia, mas era tudo exageradamente controlado pelos bailadores do grupo, arvorados em vigilantes das donzelas, podendo quase sempre dizer-se que no fim era só o verbo: pouco mais fora do que conversa fiada numa língua estrangeira. O salto em frente, a prova real de que só nas palavras cruzadas é que verbal é sinónimo de oral, nesse contexto, devo-o, precisamente, ao Zé Tó. Mas vou ter de recuar um pouco no tempo, para dar conta do severo infortúnio que entretanto o atingiu. Vou abrir aqui, forçosamente, um parêntese que trará no fecho a marca da fatalidade.

(continua).

Outras Opiniões

Os leitores são a força e a vida do nosso jornal Assine A Aurora do Lima

O contributo da A Aurora do Lima para a vida democrática e cívica da região reside na força da relação com os seus leitores.

Item adicionado ao carrinho.
0 itens - 0.00

Ainda não é assinante?

Ao tornar-se assinante está a fortalecer a imprensa regional, garantindo a sua
independência.