Luta de afectos

Sidónio Ferreira Crespo
Sidónio Ferreira Crespo

Na juventude, a vida tem redobradas atracções. Tudo é cor de rosa, sublime, dourado, lindo. A fogosidade própria da idade leva-nos para o encanto que o dia a dia nos concede. As preocupações são leves. As regras sociais não contam como um princípio a respeitar. Saem ligeiras, sem enfado, numa sinfonia adequada a cada quadrante de actividade, conforme os anos que vão subindo na escala do modo de viver. O protocolo da existência não mancha o desejo permanente de estar cheio de jovialidade e de usufruir tudo o que os olhos detectam na beleza que os rodeia. A mocidade não tem preço. É pena que não seja imutável.

No decorrer dos tempos, depois, com os anos a perverterem o avanço da idade, entra-se no campo das preocupações, que poderão abarcar toda a espécie de causas e sintomas. Os acontecimentos, quer a nível familiar, quer profissional, começam a pesar, fortemente, na nossa actuação. Surgem, em paralelo, os conflitos mundiais entre os povos, a turbulência entre as pessoas, a doença, aliado aos periódicos surtos epidémicos, a droga, a pobreza, a fome e a miséria. São problemas dos outros mas que conscientemente nos afectam. Estes dramas sociais fazem ricochete, e por via directa ou indirecta provocam-nos danos. O norte da vida pesa e balança com a frescura e o vigor da juvenilidade que mordazmente se vai extinguindo.

A velhice, lentamente, aparece. Todas as seduções da juventude vão-se sumindo como o fogo numa chaminé. Tudo se corrompe! Fica, somente, uma miragem de saudade. Aparecem, então, desejos muitas vezes angustiantes. Perde-se, por norma, a capacidade de controlar os acontecimentos. O restante caminho que falta atingir se, porventura, deixar de ser orientado e necessitar do aconchego da família, forçosamente, que será um trilho difícil, carregado de escolhos, onde as flores já débeis do jardim da origem serão substituídos por espinhos.

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À medida que a minha vida caminha para fim, mais me surge na memória as recordações da meninice, aliadas aos familiares falecidos, nessa altura, com destaque para a avó materna.

Recordo esta progenitora que no seu tempo, numa isolada aldeia onde morava, não podia fazer uso de quaisquer transformações. A natureza mostrava-lhe, apesar de ingénuos artifícios, as indeléveis marcas do tempo. Os salões de cabeleireiro não existiam na terra dela. Aliás escasseavam até nos meios urbanos. Os hábitos eram outros, como os da minha avó há mais de oitenta anos.

Quantas vezes ela me chamava, sentada na soleira da porta, dizendo, com um sorriso nos lábios, a mostrar as rugas da face: – Meu querido, vai chamar a tua mãe. Preciso que ela me penteie, porque os meus braços já não podem.

Carinhosamente, com grande amor, e nesta hora com pesar, satisfazia o seu pedido. Ao ver aqueles cabelos cor de neve a deslizarem entre os dentes imperfeitos de um pente, naquele tempo fabricado, toscamente, em osso, produziam em mim um certo prazer de brincadeira, que agora sinto os enormes e puros sentimentos que eles albergavam. Muitas vezes, penteada, satisfeita e sempre bonita, sentava-me no seu colo, encostava o rosto aos meus caracóis acastanhados, como que agradecendo o meu gesto, beijando-me, ao mesmo tempo que me fazia festinhas no pescoço. Porque é que o tempo, enternecidamente, não parou nessa altura? Quero passar ao meu filho aquela imagem da minha avó, que difunde imensa paz ao meu ego, para que ele a imagine, através da sua vivência, revendo-a nas suas avós e transmitindo-a depois, também, no decorrer da vida, aos seus filhos.

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A idade avança, as faculdades fogem, mas a esperança fica. Em menino, acredita-se. Na passagem para homem, duvida-se. No declinar, por norma, volta-se a ser crente. Gosto de viver, de estar activo, de acordar todas as manhãs e poder olhar o azul do céu. Nos dias de ampla luminosidade, na extensa varanda da habitação onde resido, aproveito o sol reconfortante, que tonifica, dando saúde, tendo por companhia uma pequena cadela, de raça especial, peluda, com o rabinho a abanar, acolhedora, inteligente, sempre cativante, e ladrando numa cariciosa manifestação de esfuziante alegria, à volta do dono, acabando por se integrar, com as suas atitudes, em todo o cenário ambiental que nos rodeia.

A visão estende-se ao verde das árvores, ao colorido dos campos e ao ouvir, em simultâneo, o chilrear dos pássaros, aos pulos, de ramo em ramo, de telhado em telhado. Sair para a rua e mergulhar na confusão do trânsito. Mas um dia tudo se acaba! Vai aparecer a hora de fazer a longa caminhada, através das vias do etéreo. Estará, lá do outro lado, no firmamento, o Deus da infinita bondade, de braços abertos, disposto a receber-me? Oxalá que sim!

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Sonhava, no outro dia, relacionado com uma viagem que fiz para além da Europa, ao Oriente, que mostrava como tudo se acaba e como seria morrer… Uma hora, duas horas passaram desde que o sol atirara o último beijo à terra. Uma hora, duas horas, o mar e a terra estavam fatigados de esperar o sol. Seria possível que estivesse esquecido? Porque tardava a luz? Que nova sedução ocupava, no coração do sol, o lugar de preferência? A areia na ilha de Taipa, em Macau, pálida, reticente, recusava-se a debruar de oiro a cambraia das suas praias. As ondas, sem ímpeto, pareciam obedecer a um destino que não estava escrito desde o seu princípio. Uma hora, duas horas, talvez, de súbito a areia estremeceu. Uma onda saltou, e com tal força que a sua cabeleira branca desfez-se nos ares. Ao longe, na linha do horizonte, vacilou, tremeluziu uma vaga claridade. O sol! O sol! Cantavam as águas, de onda para onda. A luz! A Luz! – repetia, em eco, a areia ao monte, o monte ao vale, o vale aos povoados. O sonho continuava. O ténue clarão, quase indistinto, foi tomando corpo, foi-se tornando luz. De seguida, de certeza que iria morrer tudo o que fustigava as entranhas do mundo escuro. A terra ia começar a trovar, a alegrar-se, quando o foco luminoso voltou a desaparecer. O mundo ficou triste, cabisbaixo, numa atitude desesperada. A areia revoltou-se. As ondas despentearam-se. O sol nunca tinha aparecido. Era o centro anémico de um farol distante, invisível, que chamava. Não era a luz. Só podia ser um vislumbre, ou até as trevas. No meio de toda esta luta com a natureza, subo, subo muito, e encontro-me na frente de Deus. A rir, a cantar, de mãos postas, falei-Lhe:

– Senhor! Eu sei que o sol há-de voltar, semeando, generosamente, claridade. Ensina-me a confiar nesse regresso. Quero ser forte para não acreditar em ilusões. Queria voltar a ser firme, inócuo, esperando o regresso da luz.

A resposta não tardou. Uma voz celestial, melodiosa, cantante, respondeu-me:

– És bem vindo!

Nota: Este conto, por vontade do autor, não segue a regra do novo acordo ortográfico.

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