Memórias de um verão distante

A. Lobo de Carvalho
A. Lobo de Carvalho

Foi há muitos anos!… Estava eu a cumprir o serviço militar no que foi o Batalhão de Caçadores 10 (BC10), na Cidade de Chaves, com a missão de instruir jovens recrutas que haveriam de partir para o ultramar. Nessa altura o BC10 recebia soldados com a recruta feita noutras Unidades e ministrava-lhes a especialidade de Atirador, preparando-os para o ambiente da guerra subversiva e de guerrilha.

Um dia, pela manhã, o Comandante de Companhia chamou os oficiais para lhes transmitir a missão de um exercício que ia ser levado a efeito, assim como a modalidade em que deveria decorrer. No que respeitava ao meu Pelotão, seria lançado de noite numa zona montanhosa para atingir um determinado objectivo, e só poderíamos ter connosco a arma, sem cartas topográficas, sem bússola, sem relógios nem quaisquer outros objectos, e com o cuidado específico de não sermos detectados por tropas que nos iriam controlar.

E assim, numa noite cálida de Julho, na fase de lua nova, dei por mim e pelo meu Pelotão a sermos metidos em duas viaturas para destino incerto. A viagem decorreu com a excitação própria do desconhecido, até que fomos despejados numa zona árida. Não havia no Pelotão qualquer militar natural da região, pelo que estávamos mesmo às cegas em termos de obter referências. Não podíamos andar por estradas, porque seríamos detectados e apenas nos poderíamos valer de informações que fôssemos recolhendo.

Durante a marcha o calor intensificava-se, pois não esqueçamos que naquela região transmontana se costuma dizer que há nove meses de inverno e três de inferno. Fomos palmilhando o terreno, a sede ia-se apoderando de nós e qualquer regato que nos surgisse era uma dádiva de Deus. Com o esforço, a vontade de comer começou também a fazer-se sentir no estômago, mas como não tínhamos qualquer alimento havia que procurar para sobreviver (fazia parte do exercício). E, assim, acabámos por encontrar alguns terrenos agrícolas com frutos diversas que fomos colhendo e comendo, com especial ênfase para excelentes melões. Éramos trinta e oito bocas, mas os agricultores não se queixaram, pois já estavam habituados!… De resto, o povo transmontano é do melhor que há neste país!

Já a tarde ia avançando e os meus batedores recolheram informações de que havia uma aldeia ali bem perto, mas sem a presença de quaisquer militares que nos pudessem seguir os passos, e que no centro havia um tanque e água potável. Acelerámos o passo e, à vista da água, foi uma corrida para nos refrescarmos e matar a sede. Todavia, o melhor da festa estava para acontecer!…

À janela de uma das casas, um cavalheiro observava toda a cena com extrema curiosidade, enquanto que algumas pessoas da aldeia interagiam connosco e tentavam de algum modo minorar as nossas carências com oferta de alimentos. E eis senão quando o dito cavalheiro se junta a nós dizendo que nós éramos o sangue jovem de Portugal, que tinha muita pena de nós e do que nos poderia acontecer no ultramar, e que ficava muito feliz por nos ajudar a saciar a fome e a sede. Vai daí, abre o portão do rés-do-chão da sua casa e depara-se-nos uma ampla adega recheada de presuntos, chouriços, salpicões, vinhos em garrafas e em pipas e sei lá que mais. Mandou vir, ainda. um saboroso pão caseiro e bolas de queijo, colocando tudo à nossa inteira disposição, e nós, uns mais esfomeados que outros, lá fomos comendo e bebendo até ficarmos satisfeitos.

Acabou por me referir que tinha vivido durante uns anos no Brasil, que tinha regressado e que, felizmente, não tinha problemas de dinheiro, pelo que era uma enorme alegria para si poder proporcionar-nos esta merenda. Isto passou-se em Julho de 1965 e recordo esse dia como se fosse hoje. O que nos aguardaria nos tempos subsequentes seriam momentos bem complexos nas picadas, nas matas e nos capinzais dos territórios africanos, onde em vez de produtos alimentares de eleição, teríamos tiros, explosões, lágrimas e, eventualmente, algumas perdas de jovens na primavera da vida.

Agradeci-lhe, penhoradamente, o gesto e a consideração e nunca mais o voltei a ver.

Prosseguimos a nossa marcha e a missão foi cumprida com muito entusiasmo, tendo os militares o seu moral em alta. O nosso objectivo localizava-se não longe desta povoação e, à chegada, tínhamos o nosso Comandante de Companhia a aguardar-nos. Uma saudade que fica do então Capitão Adriano Rodrigues Sanches que, em 1974, assumiria o Comando da PSP de Viseu e, anos mais tarde, já como Coronel, comandaria o Batalhão da Guarda Fiscal de Coimbra. Um Oficial que muito admirei, que me inspirou pela sua verticalidade e, acima de tudo, um grande amigo para a vida.

No fim da especialidade os elementos deste meu Pelotão foram prestar provas para os Comandos, sendo muitos deles admitidos, reencontrando outros mais tarde no Campo Militar de Santa Margarida a fazerem a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO), integrados em subunidades mobilizadas, tal como a minha. Em Angola, para onde, em Janeiro de 1967, embarquei em comissão de serviço, acabei por detectar outros destes meus antigos militares e não pudemos deixar de recordar a recepção daquele abençoado transmontano regressado do Brasil e das excelentes pessoas daquela aldeia do Concelho de Chaves.

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