Moradas abertas e cultura serrana: o horizonte da saúde e da doença mental

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Perante as escarpas e declives verdejantes da Serra da Estrela, adivinham-se caminhos, longos e tortuosos, que unem as povoações dispersas. A quilómetros de distância de qualquer centro urbano, erguem-se da pedra pequenos agrupamentos de casas, tímidas e silenciosas, não poucas das quais vazias, que pintalham hectares solitários. As histórias que habitam as aldeias e os caminhos são passadas de boca em boca como as novidades que chegam pela televisão. A romantizada tranquilidade dos bosques e vales é preservada como num quadro a aguarela, numa harmonia hermética, em tonalidades típicas de cada população. O isolamento, e a reduzida disponibilidade de transportes, prejudicaram o acesso destas populações aos serviços de saúde durante décadas. Não obstante, a doença requeria um tratamento, e outras formas de abordagem, nascidas da tradição oral, popular, e do religioso ou espiritual adquiriram raízes profundas nas histórias de vida e no contexto das populações, resistentes aos tempos e às modernidades.

As populações rurais apresentam fatores de vulnerabilidade particulares à doença mental, predominantemente de nível económico e social, que se traduz nos seus hábitos, com elevadas taxas de abusos de álcool. A doença mental é uma realidade vividamente colorida pelas tradições da região.

Na gíria popular, ter “a morada aberta” traduz a capacidade de estabelecer uma relação com os espíritos. Leite de Vasconcelos definia “morada aberta” como “a alma duma pessoa que morreu sem suprir certas promessas religiosas e que entra no corpo de uma pessoa que, tipicamente, se caracteriza por ser mais “bondosa”, “com o coração mais fraco, o espírito dói-lhes mais”. Após os devidos rituais, nos quais se inclui a descida de um “guia”, as pessoas com morada aberta adquirem, na comunidade, um papel de curandeiras, a quem os habitantes consultam. Os processos de cura passam pela realização de encantamentos, defumadoiros e poções, enraizados na medicina popular.

O estigma da psiquiatria conduz, frequentemente, pessoas com sofrimento psicológico e comportamentos estranhos a estes bruxos-curandeiros antes de recorrerem aos serviços de saúde. Apesar das diferentes compreensões da doença mental entre os curandeiros tradicionais e a medicina moderna, pensa-se que uma colaboração entre cuidados poderá trazer benefícios para alguns doentes. Não raras vezes, os bruxos-curandeiros encontram-se numa posição privilegiada para identificar casos de doença mental, podendo orientar precocemente para a avaliação psiquiátrica.

Por outro lado, algumas doenças mentais manifestam-se por perceções anormais, como alucinações, e delírios. Algumas pessoas, que se dizem com morada aberta, descrevem sensações interiores provocadas pelos espíritos, escutam vozes que mais ninguém ouve, sentem que “algo” influencia o seu corpo e as suas ações. Estas convicções revestem-se de certeza, não influenciável pela argumentação, mas brotam num contexto em que o conteúdo é admissível e partilhado pela comunidade. Se o pensamento delirante é aquele que corre por fora do sulco da realidade, onde lavram estas pessoas? Onde é que as crenças e a superstição passam a delírio? Nas cores da serra rural, o horizonte entre a doença e a saúde mental desafia classificações.

 

Sara Freitas Ramos

Médica Interna de Psiquiatria, ULS Guarda

Mestranda da UC Saúde Mental, Cultura e Ciências Humanas do Mestrado em Psiquiatria e Saúde Mental, FMUP

 

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