Na ombreira da porta do velho museu

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Ontem, nostálgico da minha distante e longa vivência por esta zona da cidade de Viana do Castelo, encostei-me a uma das ombreiras do portão do velho Museu, no Largo de S. Domingos e comecei a revivê-la desde os meus tempos de criança à radiosa juventude dos 23 anos. O trabalho longe aí me limitou, mas nunca esqueci o que rememorei ontem e continuarei a rememorar enquanto Deus me permitir.

Toda a cidade me prende. Ontem, porém, foi a Rua de S. Sebastião que me ocupou, deliciosa e inteiramente, o pensamento.

Logo de manhãzinha, a leiteira da Areosa, bonita moça de pé descalço, coturnos desde os tornozelos até meio da barriga da bem torneada perna, distribuindo de porta em porta, do seu limpo e bonito caneco de folha, o pequeno almoço de cada lar. Era, a partir daí que começava a engrossar o fluxo de gente a caminho do trabalho ou das escolas. A sapataria Magalhães ajeitando as montras para a exibição do seu calçado bonito e macio.

A mercearia do senhor Fernandes servindo os primeiros clientes sem tocar no grandalhão do gato que durante muitos anos ronronou encostado ao prato da balança, como quem diz que, se há gato, é só fora do prato. Um pouco acima, quase à entrada da Rua de Olivença, a pastelaria Dantas onde, por dois tostões, se comprava um saboroso papo-seco embrulhado em papel de seda; aqui o meu pensamento recuou para a entrada poente desta majestosa rua: entrava pelo passeio do lado esquerdo, um cavalheiro de meia idade, alto, muito distinto, chapéu alto tipo litro, colarinho à bife, casaco preto comprido e calças de fantasia. A seu lado, mas à distância de um metro ou dois, pelo empedrado da rua, um sujeito mais baixo, um tanto anafado, tipo mordomo inglês de labita, bengala e coco.

Pelo comportamento, notava-se que o homem alto sofreria de doença mental, pois a cada seis ou oito passos que dava em frente, voltava-se e, com a mesma hirta figura, dava dois passos para trás. E a cena repetia-se até à Rua do Salgueiro. Sem o perturbar, era, frequentemente, perseguido por crianças, dado que o homem ao dar os dois passos atrás, pronunciava sempre “arroz de pato”. Findo cada passeio no local por onde entrava, era encaminhado pelo mordomo para um dos solares à entrada da estrada da Areosa.

Voltando à vaca-fria mas bovino adorável — nota-se bem que, à medida que o dia avança, mais cresce o fluxo de gente a circular nesta artéria. Dada a existência de dois quartéis em Viana, é bonito ver a muito frequente passagem aqui de oficiais dos exércitos no seu bonito uniforme. E ver grupos de soldados deambulando nas suas horas de folga. E marinheiros das nossas esquadras e das esquadras estrangeiras que nos visitavam sem esquecer o pessoal das marinha mercante que fundeavam no nosso lindo porto em intercâmbio comercial; aqui, ponho a mão em concha no ouvido a escutar o conjunto celestial em canções de sonho das três ou quatro lindas sargaceiras que, com o seu carro de duas rodas de ferro foram levantar, dos pauis em frente ao Castelo Velho, o sargaço seco com que em Serreleis e Meadela fertilizam os campos de cultivo. Vamos vê-las passar a todo o comprimento desta rua e empolgar a Praça com a sua divina voz.

Estes meus pensamentos, porque só de pensamentos falo, muito difusos, é certo, mas nitidamente lembrados aqui na ombreira do portão deste velho museu, talvez não ficassem mal arquivados lá dentro como retalhinhos históricos desta nossa tão querida Viana do Castelo. Mas este simples apontamento ainda não encerra os pensamentos que trouxe para rememorar.

Vou rememorar mais um apenas, pela curiosidade: Dado o jeito que eu possuía para desenho e caricatura, por memória, fui, na minha juventude, convidado pelos amigos senhores Capitão Gaspar de Castro e engenheiro Bernardo Espregueira para iniciar colaboração gratuita no seu atelier desta rua, quase em frente do prédio onde funciona hoje A Aurora do Lima. No primeiro andar desse prédio ou no outro ao lado mais a poente, morava uma jovem senhora, esposa de um fotógrafo que eu conhecia, pessoa simpática com laboratório na Rua Gago Coutinho. Acontece que sua esposa, como beleza humana era mesmo um encanto, talvez até por ser ligeiramente gordinha. Tão encantadora era que o senhor capitão e o senhor engenheiro me pediram para lhe fazer a caricatura, dado que ela, todas as manhãs e até cerca do meio dia, se debruçava no parapeito da varanda, seios capitosos sobre os braços cruzados, observando o movimento da rua. E, eu, fiz, não a caricatura que não seria possível numa carinha daquelas, mas o mais perfeito retrato de que fui capaz. E parece ter ficado bom, tão bom que logo o senhor capitão mandou construir uma bonita moldura que dependurou na parede do atelier. Como o retrato foi feito em tamanho natural, dava a impressão de que a dama não estava apenas na sua varanda, mas também entre nós.

Curioso é que, a propósito dos seus encantos, alguém ligado aos negócios do atelier, contou ter visto e observado um jovem de cerca de 20 afrouxar o passo ao deparar com a dama. Como existia uma frutaria no rés-do-chão em frente dela, entrou e surgiu com uma rosadinha maçã camoesa que levou à boca, sem trincar e sem parar. Apenas sorrindo. Depois de percorrer uns 30metros para nascente da rua, encostou-se à parede de uma casa puxou de um canivete e começou a descascar a camoesa.

Como o guarda de giro viu, intimou, ao ver as cascas no chão:
-Faça favor de as apanhar… Tá bem?
-Ó senhor guarda… apanho, apanho, mas isso aí não são cascas… é pura “lingerie” que estou a despir desta linda camoesa!
E com os olhos na varanda e sempre a sorrir, apontou a maçã ao senhor guarda e perguntou:
-Quer dar uma dentadinha?
-Ai dava, dava, mas estou de serviço!
E foi-se por entre o vai-vem de público desta encantadora e memorável Rua de S. Sebastião.

Porfírio Miranda

N. D. – Na publicação deste texto de nosso saudoso colaborador Sr. Porfírio Miranda, pretendemos, em memória de seu falecimento há pouco mais de cinco anos (06 Março 2014), não deixar no esquecimento um dos mais assíduos colaborador de nosso tempo. O Sr. Porfirio registou durante os últimos anos de sua vida n’AURORA, –“desde a infância à adolescência (em Capareiros, Barroselas), passando pelas escolas do Carmo e Técnica (esta no Jardim D. Fernando), até à sua longa vivência profissional que o levou, por perto de 70 anos, a trabalhar na Capital, inúmeras estórias, sobre os mais variados temas. Muitas delas verídicas …”
Não esquecê-lo é, portanto, o mínimo a que nos obrigamos.

 

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