Não há machado que corte…

manuel ribeiro
manuel ribeiro

Andei, nos últimos dias e na minha cabeça, buscando um título para esta crónica. Além do que está plantado como título, outros me apareciam: “Conquista a tua própria consciência”, ou “Reconquista…”. De outro modo, pensava: “Molda a tua própria consciência”, “Recusa a formatação imposta pela cabeça dos outros”, etc, etc. Acabou por ficar a conhecida estrofe do poeta António Gedeão (pseudónimo de Rómulo de Carvalho): “não há machado que corte a raiz ao pensamento

Mas vinha logo a primeira dúvida: e o que é o pensamento? E a consciência? Como é formada? Só que, sem querer me sujeitar ao trabalhão de pesquisar ou reler tratados científicos infindos ou altas filosofias, acabei, felizmente, por recordar que até o nosso António Damásio (médico e neurologista) achou que um livro por si escrito, há uns 30 anos, sobre essas matérias não estava correto. Ora, se ele não sabia, não seria eu a gastar tempo com tão elevada sabedoria.

E por falar em sabedoria (permitam-me este intervalo): fiquemos a saber que o chamado conhecimento (que os gnósticos do tempo de Cristo procuravam incessantemente) já não basta, já é desvalorizado pelas sapientíssimas cabeças do mundo das universidades, das religiões e das moralidades, que passaram a usar esta máxima: “Tu podes ter muitos conhecimentos, mas o importante é muito mais do que isso: é teres sabedoria, um misto de conhecimento e de sensatez, ou seja, nós é que somos sábios – proclamam os antigos conhecedores – nós é que temos sabedoria em abundância. Portanto, cala-te! Não passas de um ignorante”. No fundo, o que essa soberba gente pretende (e sempre o fez e continua a fazer) é amordaçar-nos. É que o valor do saber, do conhecer, pode traduzir-se em capacidades e as capacidades em dinheiro, muito dinheiro. E o dinheiro em honras, muitas honras.

Ora, voltando ao início desta crónica, o que queria eu com esses hipotéticos títulos era convencer alguém e, sobretudo, convencer-me a mim próprio, que sem uma reflexão profunda e frequente não chegamos a construir a nossa própria consciência, o nosso próprio eu, acabando por fazer o caminho dos outros, sendo nós conduzidos pela arreata de um dono (pessoal ou institucional). Claro que o “eu” não pode ser o centro de tudo (muito longe disso), e tem de recordar sempre a confissão do filósofo grego Sócrates: “só sei que nada sei”.

Conclusão: sempre nos quiseram reduzir a zero, mas temos de lutar contra isso, procurando o conhecimento pleno. Esse conhecimento nunca o encontraremos, provavelmente, nesta vida e, na outra, também não sabemos. O nosso Fernando Pessoa tem um pensamento que, desde que o li, nunca mais saiu da minha cabeça: “Enquanto não souberes donde vieste, o que andas cá a fazer e para onde vais…não sabes nada de nada”. (Transcrição de memória)

A Igreja Católica, nestes últimos 16/17 séculos de história (fica de fora o cristianismo primitivo dos três primeiros séculos) olhou mais para o seu umbigo do que para o resto do mundo conhecido e, apesar de se auto denominar “Igreja Santa”, tem de fazer um prolongado exame de contrição (como ela determina para os seus vulgaríssimos penitentes) e arrepender-se dos trágicos erros que ela própria cometeu: censuras, torturas insuportáveis – físicas e espirituais -, execuções cruéis, e isso durante muitos anos. A diabólica “Santa Inquisição“ ou “Tribunal do Santo Ofício”, que teve a sua existência institucional, em Portugal, entre os anos de 1536 e 1821  (no total, 285 anos, quase três séculos!) causou muitos sofrimentos e, na minha opinião, deixou muitas sequelas nos povos português e das restantes colónias, na área da mente e da espiritualidade, do comportamento individual, social e religioso. Somos um povo acomodado e medroso, como consequência desses “santos” tratamentos. Os correligionários do nosso Jesus Cristo (que também era judeu e nunca deixou de o ser) foram condenados à morte na fogueira pública e, igualmente, os homossexuais masculinos à vida nas galés e caravelas e naus, nos trabalhos mais duros; as lésbicas à morte nas degradantes masmorras, húmidas e fétidas, e muita outra espécie de gente. Por triste ironia, até o ilustre Padre António Vieira (sacerdote jesuíta) foi perseguido, a ordem dos jesuítas (grandes missionários na época da nossa expansão) expulsa de Portugal e Brasil e sabemos que o jesuíta Padre Gabriel Malagrida (italiano de nascença, missionário no Brasil e pregador em Portugal) foi condenado à morte, na fogueira, no tempo de D. José I e do cruel Marquês de Pombal. A execução ocorreu no dia 21 de Setembro de 1761, em plena Praça do Rossio. O Padre Malagrida era comprovadamente inocente dos “crimes” de que era acusado. Os nordestinos brasileiros, onde a sua tarefa missionária foi muito relevante, têm o Padre Gabriel Malagrida como santo e mártir e veneram-no numa igreja dessa região brasileira. (Consultem, na net, a revista do Instituto do Ceará-2008 ou por “Padre Malagrida). Todo este facto paradoxal se explica pela simples razão de que “não há machado que corte a raiz ao pensamento”…

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