Narrativa póstuma de um cadáver afogado no nevoeiro

Author picture

São Francisco do Monte é um lugar mágico para todos os vianenses, onde todos gostamos de ir de vez em quando, subindo a encosta de Santa Luzia pelo pinhal, para ver o velho convento, com um misto de gosto romântico por ruínas e de lamento pelo estado de abandono em que aquele impressionante monumento se encontra.

Foi este lugar, “habitado por ogres, cocas, bufões fantasmagóricos e bichos papões. Sítio abandonado e pouco acessível”, onde “se refugiavam casalinhos de adolescentes, amantes secretos e adúlteros, ganzados, curtindo uns fumos (p.11) que Orlando Barros escolheu como cenário para o crime que se propõe desvendar neste livro Narrativa Póstuma de um Cadáver Afogado em Nevoeiro. Um lugar que “Não era um ponto de passagem. Não tinha saída”.

A história desenrola-se com uma interessante teia de personagens, umas sobreviventes de vidas complicadas, outras ingénuas arrastando-se em vidas banais, que se cruzam para tecer um crime numa cidade onde “violência e barbaridade não rimavam com a serenidade daquele burgo, orgulhoso das suas festas, as mais esplendorosas de Portugal, e das mulheres mais bonitas” (p.135).

O que me leva a escrever estas linhas é o facto de o livro se passar neste burgo, Viana, em pleno século XXI. Não escreverei sobre o enredo (não vai ficar aqui a saber quem é o criminoso), nem sobre as qualidades literárias (apesar de adiantar já que só um virtuoso da escrita consegue falar de paneleiragem, pretalhada, ciganadas, e outros assuntos politicamente incorretos sem se escaldar completamente), mas proponho um olhar  para o livro como uma crónica da vida vianense, das suas geografias e ritmos, no inverno de 2016 (o crime cruza-se com notícias de outro homicídio, este real e muito mediatizado, o de dois GNR, por Pedro Dias, em Aguiar da Beira, dando um estranha proximidade a toda a narrativa).

Um primeiro olhar mostra-nos que a ação se desenrola fora do habitual enquadramento turístico e, se a praça da República, a Avenida ou o Jardim são referidos, é apenas porque são lugares de passagem no caminho que as personagens têm de percorrer. De facto, a história passa-se entre a Meadela, de “modestas vivendas dos anos 50, no rés-do-chão, a garagem. As casas com telhados de quatro águas e algerozes danificados pela chuva estavam rodeadas de amplos quintais, o solo bem tratado, com árvores de fruto” (p.130) e a Ribeira, “o bairro dos pescadores – zona remediada, onde se cruzavam ruelas e quelhas estreitas, povoadas por centenas de gaivotas ladronas, atentas ao peixe trazido pelas traineiras” (p. 121). Esta escolha pelos lugares onde efetivamente os vianenses vivem, fugindo das tentações do pitoresco, dá um grande realismo, e até valor documental, à narrativa. 

Depois, o nevoeiro, que o título coloca como protagonista do enredo. Só quem não passou um inverno em Viana é que não sabe como a sua presença constante molda a forma como olhamos a cidade, que fica mais insinuada e misteriosa. 

Também as biografias dos protagonistas refletem os nossos tempos, nomeadamente na grande presença dos Estaleiros Navais nas vidas dos personagens ou o desejo de ter uma loja de artesanato, aqui tão ironicamente chamada FolkArt.

É também muito curioso que, neste ambiente minhoto, onde todos trocamos os bês pelos vês, Orlando Barros tenha construído uma das personagens à volta do seu “sotaque à moda do Porto, que usava como se fosse uma arma de intimidação” (p. 75). Teremos de lhe perguntar se foi de forma consciente que assinalou a diferença entre os sotaques, vianense mais doce e portuense mais duro. 

O autor denuncia-se como escrevendo de dentro da cidade, ao não conter opiniões sobre a estatuária pública ou as bolas de Berlim que tanto atraem os turistas, mas também ao colocar o Café Sport, o Gil Eanes ou a Maria de Perre como locais onde a ação se desenrola e ainda ao decorar as cenas com grossas paredes de granito onde podemos ver peças de loiça de Viana, ou como os roubos são de ouro, “especialmente cordões e arrecadas” (p.101).

Orlando Barros é de Leiria, mas vive em Viana há muito tempo, e talvez tenha sido esta sua dupla relação com a cidade que o ajudou a uma descrição tão lúcida. Também ajuda, com certeza, a sua longa carreira na escrita, com passagens pelo teatro, onde a criação de cenários/ambientes é quase tão importante como as próprias personagens.

Como é sabido, perdemos a capacidade de reparar em coisas com que nos cruzamos todos os dias e, por isso mesmo, se tornam invisíveis. Livros como este ajudam-nos a compreender melhor a nossa cidade, a renovar o olhar pelos sítios que nos são tão familiares.

 

João Alpuim Botelho

Outras Opiniões

Os leitores são a força e a vida do nosso jornal Assine A Aurora do Lima

O contributo da A Aurora do Lima para a vida democrática e cívica da região reside na força da relação com os seus leitores.

Item adicionado ao carrinho.
0 itens - 0.00

Ainda não é assinante?

Ao tornar-se assinante está a fortalecer a imprensa regional, garantindo a sua
independência.