Nas barbas da autoridade

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Vai para quarenta anos, num dia de fevereiro, (que não recordo qual fosse mas que, para o caso que pretendo divulgar, não tem especial relevância) tendo acabado de chegar a Viana do Castelo e após ter deixado a bagagem que trazia na casa que me estava atribuída, resolvi procurar um sítio para jantar e dar um pequeno passeio pelo centro da cidade que só conhecia através dos guias turísticos.

O frio intenso que se fazia então sentir, aliado ao facto das ruas do centro da cidade se encontrarem totalmente desertas, levaram a que encurtasse o passeio e procurasse regressar casa, até porque tinha ainda de preparar alguns assuntos relacionados com a recepção do cargo que iria em breve assumir.

Já perto de casa, dei por grande agitação no interior da doca comercial (que actualmente serve de doca para as embarcações de pesca), e era ao tempo totalmente delimitada por um gradeamento com uma única entrada, a qual se situava junto ao canal da eclusa.

Movido pela curiosidade, aproximei – me do local, verificando tratar -se de um grupo de 7 a 8 homens que, munidos de fisgas e zagaias, procuravam pescar lampreias, artes essas que, tanto quanto julgava saber, estavam interditas por lei.

Muito pouco tempo após a minha chegada ao local, que não suscitou qualquer reparo daqueles “pescadores“, toda a atenção foi concentrada numa lampreia que acabara de entrar na doca nadando em direcção ao topo. Tanto quanto me recordo cada um dos presentes efectuou três ou quatro tentativas, com as zagaias e as figas, para a captura da espécie, tentativas essas que não lograram qualquer êxito o que, no entanto, não fez desanimar qualquer dos participantes convictos de que, como afirmavam, a lampreia não lhes escaparia aquando do percurso inverso.

Por motivos para os quais não foi encontrada qualquer explicação e a tal lampreia efectuou o regresso nadando junto ao topo Sul da doca inviabilizando assim a possibilidade de actuação de qualquer dos equipamentos de que os tais “pescadores“ dispunham.

Tal insucesso, para além de um conjunto variado de impropérios, a que a família mais chegada da lampreia também não escapou, permitiu -me entabular conversação com alguns deles, conversa essa que incidiu, essencialmente, sobre a actividade que estavam a desenvolver, quer quanto à sua frequência, como também sobre a sua rentabilidade e a sua eventual legalidade.

Após me referirem quanto ao elevado valor das lampreias e que tal actividade ocorria somente num número reduzido de dias, não tiveram qualquer problema em informar que a prática que levavam a cabo não era permitida por lei, o que me levou a questioná-los sobre o risco de ser realizada mesmo em frente da Capitania do Porto, a quem estava cometida a fiscalização, ao que me retorquiram que, mal observassem a abertura da porta da Capitania e a saída do cabo mar, o tempo que este levaria a chegar ao local, rodeando grande parte da vedação da doca, conceder – lhes -ia o tempo suficiente para fazerem desaparecer os apetrechos proibidos e assim escaparem a qualquer punição.

Perante a ignorância por mim demonstrada sobre factos aparentemente tão sobejamente conhecidos, fácil lhes foi perceber que era pessoa nova da terra o que suscitou curiosidade quanto ao trabalho que iria desempenhar em Viana do Castelo e para o qual aventaram como hipóteses possíveis, quando afirmei que iria prestar serviço num organismo do Estado, ser nas Finanças, no Hospital ou num dos vários estabelecimentos de ensino.

O pudor impede-me reproduzir a totalidade das expressões utilizadas aquando da seguinte resposta que lhes dei:

– Não, não, na realidade sou o novo Capitão do Porto.

O que mais me surpreendeu neste episódio foi o de todos aqueles “pescadores, conforme lhes disse para o fazerem, na manhã do dia seguinte se terem apresentado na capitania, isto apesar de não os ter sequer identificado, nem certamente os poder voltar a reconhecer.

Carlos Alberto Encarnação Gomes

ex-Comandante do Porto de Viana

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