“Nem mais um pio”

Manuel Quintas
Manuel Quintas

Dez anos depois de criada a diocese, mais concretamente, em 5 de Janeiro de 1987, fui chamado à presença do Senhor D. Armindo para deixar a minha Areosa e assumir a administração da minha diocese. Ambas eram minhas e em ambas tinha eu colocado o meu coração; mas, a possibilidade de servir as duas em acumulação não me foi concedida. Diante de tão violenta notícia, as lágrimas não me adiantaram nada. Por isso, no fim da audiência, Sua Excelência disse-me assim: «Ajeite-se um bocado para que, ao sair, ninguém pense que eu lhe dei uma coça». A obediência não é sinónima de resistência. Comandante manda e marinheiro faz. E assim transferido para a Quinta de S. Lourenço, lá exerci as funções de provedor da despensa doméstica, industrial de leite vacum, vendedor de fruta, negociante de lenha, patrão de operários, vigilante da contabilidade, guarda noturno e diurno, feitor da quinta e ainda por cima capelão de freiras. E no meio de tantos e tão valiosos tachos que me não deixaram saudades nenhumas, ainda me sobrou tempo para pensar na sepultura dos bispos. Ciente de que os bispos também morrem, este assunto pertencia ao meu pelouro. E a pensar nisto, visitei alguns jazigos da Ordem Terceira de S. Francisco onde encontrei o meu amigo António Silva que logo me surpreendeu com a hipótese de gratuita cedência de um jazigo que eu achei condizente com o meu pensamento. E, já na despedida, ele disse-me que o presidente da Ordem era o Dr. José Gonçalves de Araújo Novo a quem devia ser levado o assunto. E não perdi muito tempo em procurá-lo para receber redobrada surpresa: o dito António já tinha aberto a porta à doação. Tudo facilitado. Tudo bem. Tudo oralmente falado, combinado, agradecido e arrumado. Mas, com a minha dose de santa ou manhosa ronha, perguntei ao Dr. Araújo Novo se, no dia seguinte, Quinta-Feira Santa, na reunião magna de todo o clero com o Bispo, eu poderia anunciar a boa nova. E, na posse da resposta afirmativa, no dia seguinte, fiz o anúncio. A Diocese recebeu muitas palmas, o Dr. Araújo Novo e a Ordem Terceira outras tantas palmas e, de tantas que foram, ainda sobraram algumas para mim. Mas, entre o clero presente, também estava o padre Constantino que logo se apressou a falar comigo para me dizer: “Que não”. “Que era muito valor”. “Que não podia ser”. “Que não era assim”. “Que… Que… Que…” Percebi. O padre Constantino não era a mesa, nem da mesa e muito menos presidente da mesa; não era mesmo nada na dita Ordem; mas a sua interferência na vida da cidade era uma força dominante; dominava mesmo. Mastiguei em seco. E fui pôr o meu Bispo ao corrente, muito convencido, mas mesmo muito convencido, que os dois falariam e tudo acabaria bem. Mas o meu Bispo, de sobrolho carregado, secamente, me respondeu: “Sobre este assunto nem mais um pio”,
Nem mais um pio. Ponto final. Percebi logo que por ali passava caça da grossa. Assunto arrumado. Mas, pequeno e desvalorizado como sempre me achei e sou, dei comigo a pensar que Deus e o tempo resolvem mais problemas do que a cabeça quente dos homens. E, nas estradas da minha vida, sempre percebi que um bom travesseiro também é um bom companheiro de viagem. Deus, o tempo e o travesseiro.
E o tempo andou. E, a pedido do Senhor João Silva, no fim de uma das missas das onze horas, na Ordem Terceira de São Francisco, da qual é mesário o dito Senhor João Silva, fui convidado por ele para ir ao cemitério. Eu fui e vi e aplaudi um jazigo muito digno supondo eu que era para ele e para a família dormirem o sono da paz. Perguntou-me: Que tal? E eu respondi: é digno. E rematou: É da Ordem Terceira de São Francisco para os bispos da diocese dormirem o sono da paz eterna, se assim quiserem.
Percebi. Deus e o tempo e a sensibilidade dos crentes sem preconceitos pequenos, para não dizer gananciosos, tudo resolveram.
Para mim serve o terreno frio de Areosa; mas, para os bispos, achei sempre que algo mais digno seria bem melhor. Está conseguido. Temos dois Senhores Bispos que, quando quiserem, já podem morrer. Mas, acho para mim, que não precisam de ter pressa.
Parabéns à ordem Terceira de São Francisco e ao senso cristão de quem a serve.

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