O bonecreiro

Sidónio Ferreira Crespo
Sidónio Ferreira Crespo

Sou um lisboeta por simpatia e pelo modo como fui acolhido num passado distante e já a querer perder-se no universo temporal. Vivência de cerca de meio século na capital, ou nas regiões envolventes a convergir com o rio Tejo. Guardo no computador da memória os mais variados acontecimentos, tanto positivos como negativos. Lembro-me do início da sua expansão demográfica, aliado à construção do metropolitano, das auto-estradas, da ponte chamada, agora, 25 de Abril e, mais tarde, já no retorno às origens, a ponte Vasco da Gama. As barracas e as edificações selvagens, na ilegalidade, com puxadas clandestinas de electricidade e água, em recantos da cidade e À sua volta, sem as mínimas condições de salubridade, autênticos atoleiros humanos apareceram, mais tarde, após Abril de 1974, derivado a variados fenómenos, que de forma abrupta se foram avolumando.

Lisboa será, sempre, uma cidade bela que encanta e, em simultâneo, carregada de tradições. Não é daquelas formosuras que dominam ao primeiro encanto. É preciso, primeiro, amá-la. Só o tempo ensina como esta urbe é afectuosa, eficaz, tépida, acolhedora. As sete colinas tradicionais são airosas, mansas, doces e sigilosas. Nos miradouros admiram-se paisagens de encantar, desde o Castelo de s. Jorge, passando pelo elevador de Santa Justa e da Glória, até ao Parque Eduardo VII, tendo como plano de fundo, além da baixa pombalina, o rio Tejo e a sua navegabilidade. A atmosfera é, na maioria dos dias, transparente e cativante.

A memória registou o que acompanhei, no tempo, servindo, agora, de ensaio para historiar um caso humano, que se desenvolveu nos bairros típicos da capital. O Vítor Manuel quando tinha oito anos, o avô do lado do pai, aposentado de piloto aviador, trouxe-lhe, de uma viagem que fizera ao Brasil, um livro de presente, grande, vistoso, colorido. Quando se abria a página do meio, saía cá para fora as figuras ufanas de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, personagens dilectas do seu progenitor. Tantas vezes mostrou o livro, na brincadeira, aos rapazes da sua idade, folheando-o, sucessivamente, que acabou por ficar todo desmanchado. Mas tudo isso em nada alterou o seu gosto pela cultura popular, conjugado com os feitos históricos contados pelo avô.

Nasceu em Lisboa, na zona ribeirinha, de Madragoa a Alcântara, passando por Belém, área junto ao mar, que impressiona pela sua monumentalidade, até Santo Amaro. Mais do que nos bairros centrais é aqui que a cidade, verdadeiramente, encontra o seu rio, na vivência, no trabalho e na indústria. É a área das docas, dos transportes, das zonas de produção, das fábricas e armazéns, mas também de locais fortemente castiços.

Perdeu o pai e a mãe, que faleceram de doença súbita, ainda muito criança. Foi criado pelos avós do lado paterno. For “um puto de Lisboa”, do berlinde e da pendura nos eléctricos. Contrariando a vocação dos seus avós e a instrução que lhe foi ministrada na antiga escola primária, nunca soube localizar no calendário do viver a sua paixão pelos fantoches, como se, efectivamente, tivessem nascido com ele. Corria atrás dos bonecreiros, que faziam caricaturas chamadas “robertos”, e com eles contavam histórias de barbeiros e touradas. Andavam com uns biombos, que os transformavam em tendas de pano para, depois, apresentarem os espectáculos. Usavam palhetas, que emitiam sons em instrumentos de sopro, a fim de atirarem, para o ar, as vozes que davam vida às representações. O rapaz, para tentar aprender, ia à volta, surpreendendo os bastidores, mas era desde logo enxotado pelos artistas, sempre ciosos da sua magia.

  • Uma marioneta é aquilo a que o manipulador dá vida, mostrando que tem alma, aliado a forte motivação para que possa, realmente, atrair o espectador — explicava, aos amigos, já na prática de bonecreiro, depois de lhes apresentar um pato, uma das suas figuras preferidas, que mexia os olhos, a boca e ainda fazia, educadamente, grulhada.

O avô queria que fosse marinheiro, seguindo a escola do Alfeite. Referia, em tom de brincadeira, não lhe agradar as calças à boca de sino, nem tão pouco a vida do mar. Na época da guerra colonial serviu o exército na Guiné, onde fez acção social nas escolas com desporto e actividades ao ar livre, trabalho que foi motivo de louvor na sua caderneta militar. À hora do regresso recordava uma imagem de emoção, perante uma turma de crianças, no cimo de um morro, entoando, em coro, a canção de Lopes Graça… “Só até à vista… e só até à vista irmão… Os olhos esverdeados a suportar as lágrimas saudosas, enquadrados numas finas hastes dos óculos arredondados, ficavam embaciados, quando se lembrava daquela a

afectuosa despedida.

O Vitor Manuel, no quotidiano, embora já carregado pelos anos, continuava a usar barba e cabelos compridos, mas aparados com rigor. A boina, a cobrir a cabeça, era a sua imagem de marca, herdada do seu avô e do pai. Casou após voltar da guerra. Teve dois filhos. Divorciou-se. Dizia que foi por causa do seu levianismo artístico. Deixou Lisboa e passou a residir no Seixal, do outro lado do rio Tejo. Trabalhou em computadores, que começavam a aparecer. Em paralelo, tornou-se pioneiro dos desportos radicais e passou a desenvolver uma série de actividades em estabelecimentos escolares para se sustentar. Embrenhou-se em leituras sobre fantoches, aperfeiçoando os conhecimentos que lhe davam abertura para participar em festivais. Frequentou cursos de formação de que ressaltaram fortes aptidões para a arte de bonecreiro.

Muitas vezes, sentado no paredão da doca fluvial do Seixal, esperando a ida ou a volta do barco de Lisboa, olhava o céu, recordando o passado, na afirmação do presente, ao mesmo tempo que os pássaros de grande porte perfuravam o horizonte, lembrando a canção “Uma gaivota voava… voava”…

A vida foi-lhe hostil. Um problema de saúde deixou-o paraplégico. Neste estado, lançou um desafio aos políticos, através da imprensa, para que experimentassem andar de cadeira de rodas durante uma semana, aproveitando, em simultâneo, para pedir ajuda. Imperou o silêncio. Face a esta tremenda vicissitude, para poder sobreviver acabou por ser comediante, através da arte de manipular bonecos. Dando, assim, novo impulso à vida, rapidamente desenvolveu um projecto com estruturas montadas em cima da cadeira de rodas, que ajudado por um filho que seguiu a vocação do pai, transformava-a num palco. Passou a encantar as audiências, parecendo querer eternizar, daquele modo, a arte desenvolvida na construção e simbolização de fantoches.

 

Nota: Este conto, por vontade do autor, não segue a regra do novo acordo ortográfico.

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