O Catolicismo e as suas crises

José Veiga Torres
José Veiga Torres

O catolicismo vive uma crise profunda, apesar de continuar a ser para muitas pessoas um espaço vital de busca de sentido e experiência de fraternidade. As situações de abusos de poder e violências sexuais vieram evidenciar problemas sistémicos. Em Portugal, depois de terem criado uma Comissão Independente (CI) para estudar os abusos sexuais sobre crianças, os bispos ficaram na indefinição sobre o que fazer com o panorama posto a nu pelo relatório da CI. Perante a perplexidade que tomou conta da sociedade e de muitos crentes, o jornal digital 7MARGENS convidou católicos a partilhar leituras da situação e propor caminhos de futuro, a partir de três perguntas: 

Quais são os pontos que considera centrais nas medidas a assumir agora pela Igreja, para ser fiel ao Evangelho e ser testemunho de Jesus Cristo na sociedade? A quem cabe concretizar e liderar a aplicação de tais medidas? 

Considera que faria sentido que os batizados se encontrassem e se escutassem sobre essas tarefas e desafios que se colocam à comunidade eclesial, a nível diocesano e/ou nacional? Como? De que formas? 

Que contributo(s) estaria disposto a dar para que a Igreja, os católicos e as suas comunidades adotem um caminho centrado no Evangelho em ordem a superar a prática de abusos?

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 A sinodalidade só se realiza em verdadeiras comunidades livres 

Nesta décima sétima resposta, José Veiga Torres, nascido e batizado na paróquia de Santa Maria Maior, da cidade de Viana do Castelo e residindo atualmente em Coimbra, sem a preocupação de se restringir às perguntas, centra as suas propostas na sinodalidade e suas implicações na vida da Igreja e, sobretudo, nas relações entre comunidades. 

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Procurando corresponder, a meu modo, à solicitação do 7MARGENS, para partilhar propostas de “caminhos” de futuro do cristianismo, diria o seguinte: 

1. A Carta ao Povo de Deus (agosto de 2018) e o regime de sinodalidade em que o Papa Francisco comprometeu a Igreja Católica mostram-nos que a Igreja (a sua estrutura hierárquica – o seu mundo clerical), ganhou consciência de que, para se evangelizar a si mesma, tem de o fazer com os demais cristãos, com os que considera seus fiéis, e com os que julga estarem “de fora”. 

2. A sinodalidade exprime, efetivamente, o comportamento relacional originário das igrejas, isto é, das comunidades cristãs. Confirmam-no o testemunho do Novo Testamento, particularmente as epístolas apostólicas e o testemunho dos estudos históricos das origens das Igrejas. A sinodalidade corresponde à mais natural forma de realização humana, pela convivência e mútuo enriquecimento, cooperação e ajuda. A sinodalidade terá de ser, pois, um critério processual a assumir com radicalidade (com verdade). O cristianismo (evangelização) só é compreensível e realizável na aprendizagem da sua “raiz”, que é Jesus. A conversão da Igreja (e a nossa conversão permanente) só nos é possível na conformidade com a raiz, isto é, em radicalidade. 

3. A sinodalidade real e verdadeira, só se aprende e realiza em verdadeiras comunidades livres, não coartadas por formalidades, ritualismos, especulações teológicas, direitos canónicos e fronteiras administrativas, ou seja, em comunidades de “face a face”, de convivência, de reflexão, de oração, de comunhão, que nos converta (comunidades sinodais). Nelas Jesus presidirá (Evangelho de Mateus 18, 20). Da sinodalidade resultarão os serviços, os ministérios necessários, o seu modo e tempo de exercício. Tais comunidades procuram constituir-se em “redes de comunidades face a face” (“comunidades sinodais”), em processo de conversão institucional, sempre no empenho da sua mútua e comum evangelização, com repercussão na conversão social e política dos indivíduos, das sociedades e do mundo. Assim se aprenderá a perceber e a realizar o “Reino”. Na sua convivência se processará a reflexão teológica e a partilha ministerial, no seguimento da modéstia e do despojamento de quem “sendo de condição divina” se fez simples homem (Carta a Filémon 2, 6-9). 

4. Necessitam-se essas comunidades, não para imitar as das Origens, mas porque as das Origens correspondiam às aspirações da mais verdadeira realização humana (vocação e salvação), procurando aprender, mutuamente, o máximo de realização de boa liberdade individual no máximo de boa liberdade comum, ao nível do quotidiano, familiar, profissional, social e político. A comunidade “face a face” é o espaço natural e cristão dessa aprendizagem, curando a desagregação e a dispersão individualista, e a alienante massificação ritualista e de representação hierarquizada, respondendo ao apelo do apóstolo Paulo: “fostes chamados para serdes livres, fazei-vos servos uns dos outros através do amor” (Carta aos Gálatas 5, 13). Não serão comunidades onde só uns são servos de outros, mas onde todos procuram ser servos de todos. Neste apelo de Paulo está a raiz da verdadeira forma da institucionalização do cristianismo, em que a evangelização sinodal não seja sobreposta pela “representação” sacralizada, nem por um sagrado autoritarismo. 

5. Cremos que o futuro do cristianismo de massificação e de representação não converterá as pessoas nem o mundo; poderá permanecer como associação conservadora de tradições rituais religiosas, enfeudadas a instituições mundanas de poder, onde a violência e a mentira perdurarão. Esse cristianismo separado da sua raiz é árvore que seca. O cristianismo só sobreviverá sólido e consistente, na sua missão evangelizadora, segundo a sua raiz, em comunidades sinodais, empenhadas na sua mútua conversão, evangelizando-se mutuamente. 

6. Nada deve impedir que a emergência de comunidades de face a face, sinodais, em rede, se processe no interior das estruturas eclesiásticas existentes (se a sua sinodalidade for autêntica), ou no exterior dessas estruturas, procurando, pacífica e fraternalmente, a sua comunhão em rede. O seu objetivo único é o da conversão de vida individual e coletiva, segundo o projeto de Jesus, com repercussão concreta no contexto individual, social e político, com pacífico vigor. 

Pessoalmente, participaria alegremente numa comunidade desse tipo, recordando uma em que participei, em Paris, já nos longínquos anos 70 do século XX.

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