O filho incógnito de “Adolf”

José Carlos Freitas
José Carlos Freitas

Nas últimas décadas, a Europa tem beneficiado de um clima de paz historicamente tão inusitado quanto, obviamente, bem-vindo. Conduzidos por líderes – da esquerda, à direita –  com especial sentido de responsabilidade, razoabilidade e conhecimento histórico, fomos sendo capazes de afastar, com sucesso, o espectro da guerra sob o território europeu, dirimindo todo e qualquer atrito havido. Na verdade, todos os conflitos que vivemos neste período, após a indescritível carnificina da Segunda Guerra Mundial, tiveram sempre, felizmente, um pendor muito mais regional do que global, levando, inevitável e naturalmente, à instalação de uma permanente sensação de absoluta segurança, tão confortável quanto subversiva, como ora se percebe. Não há bem que para sempre dure…

Eis-nos bem entrados no Século XXI. E eis que se esfuma, em poucos dias, essa quase absoluta sensação de segurança que era, afinal, uma puéril ilusão global, mas que nos levou a baixar a guarda e a tomar por adquirido o que, afinal, nunca estará garantido. Imbuídos nesse espírito “peace and love”, o mundo, em geral, e a Europa, em particular, não viram o que hoje se afigura óbvio: a insanidade de um líder que quer – e vai – ficar na história pelas piores razões possíveis.

O vil, injustificado e desproporcional ataque da Rússia à Ucrânia, motivado por um irreal chorrilho de pretextos sem o menor respaldo factual, tem merecido, da generalidade da comunidade internacional, veemente repúdio, motivando ainda inusitadas e, deseja-se, consequentes medidas de ajuda. Mas, até ao momento, não obstante a inédita onda de solidariedade internacional entretanto encetada, ainda não se reuniu força suficiente para mitigar as brutais consequências humanitárias emanadas do conflito ou alterar aquele que se afigura como desfecho mais do que provável: a expansão da Federação Russa por via da total destruição do estado ucraniano e decorrente dilaceração do seu povo. 

Povo que se vê esmagado por uma força invasora liderada por um psicopata, que já demonstrou não ter quaisquer escrúpulos, quanto aos métodos, ou limites, quanto aos objectivos. Povo que vê, em poucos dias, as suas casas reduzidas a escombros. Povo que foge, em massa e em absoluto desespero, sem destino certo, levando consigo pouco mais do que os empoeirados trapos que lhe vão cobrindo o corpo, sem que o proteja do frio gélido, enquanto carregam os seus filhos nos braços, numa derradeira e desesperada tentativa de lhes salvar a vida. Povo que dá à luz em estações de metro, em condições de insalubridade aterradora, crianças que, ainda mal nascidas, já carregam o peso de um conflito que lhes roubará tudo. Povo que vê os seus hospitais, incluindo os pediátricos, bombardeados indiscriminada e despudoradamente. Povo que vê os seus doentes com cancro – muitos crianças – perder definitivamente a luz da esperança que antes ainda viam. Povo cujos representantes políticos cantam, em assembleia, o hino nacional ao som das bombas que caem no exterior. Povo que perece indefeso, às mãos do seu carrasco, e que vive em sofrimento incomensurável, transmitido em directo nas televisões, perante os nossos impotentes e crescentemente húmidos olhos. Povo que está, inevitavelmente, aterrorizado, mas que nos dá verdadeiras lições de resiliência, de resistência e de patriotismo. Povo ao qual o mundo não pode – não pode mesmo! – virar as costas, devendo acolher quem desse inferno instalado deseje sair, “no questions asked”. 

Já todos percebemos que qualquer acordo de cessar fogo, ainda que temporário, é apenas um cenário irrealista e inexequível. Tal só acontecerá quando todo o território se subjugar perante a implacável força invasora e aceitar Putin, “O Louco”, como líder incontestado. Nem que isso signifique não sobrar pedra sobre pedra num território totalmente esventrado. Também já concluímos que não assistiremos a qualquer intervenção armada da NATO em território ucraniano, pois sabemos bem que tal significaria a escalada do conflito para uma dimensão mundial e, presumivelmente, nuclear. Logo, catastrófica e nunca resolutiva. 

Estamos, pois, limitados à pressão diplomática, aos embargos e sanções económicas, e ao auxílio, embora sempre por via indirecta, aos resistentes ucranianos. Qualquer coisa equivalente a querer apagar um incêndio florestal com um balde de água: uma ilusão, mas um esforço necessário. O filho incógnito de Adolf Hitler, rebaptizado de “Putin”, sabe-o bem. Daí o seu conforto impassível enquanto tudo à sua volta arde…

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