Os sinos ainda tocam a rebate?

José Veiga Torres
José Veiga Torres

Antigamente, os sinos tocavam a rebate, em casos de perigos eminentes. A modernidade criou instrumentos mais rápidos e mais eficazes para tal  função. A vocação dos sinos é a de evocar festivamente a trajetória histórica da Criação. A vocação dos sinos, simbolicamente, não é apocalíptica. Deve celebrar os grandes tempos da “ordem natural” das coisas e das pessoas, a ordem da Criação, que é, sobretudo, a ordem natural das pessoas, caminhando, progressivamente, para o futuro venturoso que deve ser a nossa ambição e fruto da nossa luta. Nos campanários das igrejas, o belo som dos sinos deve ouvir-se para a sua função original, para festejar os grandes momentos da nossa trajetória de vida: do nascimento para esta vida transitória até ao nascimento para  uma outra forma de vida não transitória. 

É preciso entender a ordem da Criação, a ordem do Universo, como dinâmica, progressiva, sempre em direção à procura de vida melhor, superando os inevitáveis dramas e tragédias do percurso. A Criação não parou, é um processo permanente, continuo. Estamos todos em permanente estado dinâmico de criação. Por isso, estamos sempre em transformação. A Criação (o Universo) não é uma ordem fixa, invariável, determinística, dogmaticamente intocável. Pensá-lo é fanatismo.

Sobretudo, quanto às pessoas, não é uma ordem meramente biológica. Uma pessoa, não é uma mera realidade biológica. A Criação humana, a humanidade, não é uma mera massa de seres biológicos. São gente que, na sua sociabilidade, descobre os critérios que devem regular e orientar a sua convivência social e projetar o seu futuro. É uma realidade de gente que pensa, que sente, que se interroga , que investiga, transformando conceitos e modos de vida. Nem sempre é fácil aceitar e acomodar-se aos conceitos e modos de vida criados por novas gerações. Não devem, ligeiramente, tratar-se de absurdas ou de obscenas. Seria de um pessimismo apocalíptico.

As normas universais de comportamento, sintetizadas nos “Dez Mandamentos”, foram sendo descobertas  pelos humanos na sua consciência, pelas necessidades de boa convivência e de bem viver com a Natureza. A sua aprendizagem prática faz-se na convivência. Pela aprendizagem mútua se forma a boa consciência, que não é imutável. Jesus advertia os seus discípulos para a devida interpretação dos “sinais dos tempos” (cf.Mt. 16,3), precisamente, porque os tempos são mutáveis. Ele mesmo veio criar um tempo novo, de uma consciência nova sobre o modo de conviver humano e do seu destino. Pela reflexão sobre “os sinais dos tempos” esclarece-se  e enriquece-se a consciência humana. 

A atual consciência social dos Direitos Humanos é recente, mas é necessária. Apesar da sua origem ser cristã, durante muitos séculos  estava tão obscurecida que os cristãos se conformavam com a dominação servil e até com o comércio de escravos. Do mesmo modo não se tinha consciência da condição humilhante e secundária das mulheres na ordem social, nem o a devido respeito pelas crianças. Hoje, impõe-se uma nova e universal consciência dos deveres ecológicos, exigida pelas consequências negativas das tecnologias adotadas para o nosso bem-estar. Uma nova e científica conceção da vida humana exige-nos a transformação da convivência social, pelo respeito à sua condição sexual sob as suas várias formas de expressão. Objetivamente, a sexualidade humana não é meramente biológica, nem é, de facto, meramente binária. Qualquer dos aspetos do ser humano é complexo, nunca redutível aos seus mecanismos biológicos. A sexualidade humana nunca poderá ser maltratada como absurda e repugnante nas suas várias e sérias expressões. A Criação humana processa-se com diversidades de circunstâncias e de culturas. 

Nem sempre as novas conceções, as novas ciências, as novas tecnologias têm servido pera o melhor modo de viver. Sempre haverá quem com elas provoque tragédias. A liberdade humana, para o bem ou para o mal, é intrínseca ao processo da Criação humana. Estamos, agora, vivendo a trágica guerra contra a Ucrânia e as suas terríveis consequências humanitárias, económicas e geo-políticas. Continuamos submetidos e impotentes ao domínio financeiro de oligarquias neo-liberais, e temerosos das consequências devastadoras das perturbações climáticas. Tais dramas e tragédias não nos deixam perceber que a História Humana tem sido, sempre, capaz de as superar e de delas partir para outro patamar de realização superior.

Houve sempre pessimistas, mas nunca foram os pessimistas os grandes criadores de humanidade. Houve sempre conceções apocalípticas. Até no cristianismo. No livro do Novo Testamento que é o “Apocalipse”, muitos só vêem a tragédia da Criação, mas o sentido central desse texto é a festiva vitória cristã sobre o mal, a festa de um mundo novo, em que «nunca mais haverá morte, nem luto, nem gritos, nem dor» em que Deus declara: «faço novas todas as coisas» (Ap.21,4-6). É pelo mundo novo, que os sinos devem tocar festivos, para que possamos lutar por ele.

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