Partiu Miguel de Araújo e a Ribeira-Lima fica mais pobre

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Nunca soube como alinhar notícia sobre um amigo que nos deixa. Os factos esbatem-se nas saudades, as datas trocam de algarismos, os planos saltitam no vazio que sentimos. É o que acontece ao pensar em Miguel de Araújo (Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo), que nos deixou no passado dia 11 de Fevereiro e cujo funeral se realizou a 14, depois de missa de corpo presente pelas 13 e 30.

Nascido a 30 de Dezembro de 1929, numa casa apalaçada da vianense rua da Bandeira, nos tempos em que a vetusta e longa via ainda era lajeada, Carlos Miguel aí viveu até próximo dos 13 anos, chegando a frequentar o Liceu de Gonçalo Velho onde seu Pai, Deoclécio Dias de Araújo, licenciado em filologia românica, dava aulas. Sua Mãe, D. Laura Maria de Sousa do Carmo de Sousa Abreu, descendia, tal como o Pai (eram primos entre si), da conhecida e respeitada Casa do Espírito Santo, ou da Feitosa, na acolhedora vila de Ponte.

Em 1942, a família muda-se para Lisboa e Carlos Miguel entra para o Liceu Camões, ali encontrando professores como Jacinto Prado Coelho e Leitão de Barros. Passa depois pela Faculdade de Letras e segue para Paris. Frequenta a Sorbonne e finaliza o curso da Alliance Française naquela cidade, prosseguindo depois cursos de línguas em Espanha e Itália como bolseiro da Gulbenkian e dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros de França e Espanha.

Quando regressa a Portugal ainda trabalha alguns anos numa Caixa de Previdência, antes de ingressar na Radio-televisão Portuguesa, sector dos Programas Culturais, logo após a sua fundação em 1957, altura em que simplifica o seu nome para Miguel de Araújo. E é a partir dessa mudança que estabelece constantes contactos com escritores, artistas, políticos, intelectuais, cientistas, juristas, personalidades da Igreja e das Forças Armadas, firmando amizade com muitos deles.

Aquando da revolução do 25 de Abril, encontrava-se em serviço em Paris. Mal soube do que acontecera, e sendo Director-Geral dos Serviços de Programas da RDP, regressou de imediato a Lisboa, a tempo de a 29 assistir à tomada de posse da nova Comissão Administrativa (um capitão-de-fragata, um tenente-coronel do Exército e um major da Força Aérea) e de por eles lhe serem dadas instruções para a organização de um novo 1.º de Maio em liberdade. Apesar do êxito da festa e da transmissão, dias depois foi saneado sem qualquer justificação.

Passou então Miguel de Araújo dias difíceis, vivendo sobretudo de traduções para editoras ou alguns organismos, até chegar a ser também redactor-principal do semanário O País e director da revista A Semana. Só em 1978 foi reintegrado na RDP após decisão judicial, começando por assumir então funções de Director do Centro de Investigação Audiovisual, a que outros importantes cargos se seguiriam.

Devo a Júlio Evangelista e a António Manuel Couto Viana os iniciais contactos, nos anos 60, com Carlos Miguel. Mas só após o meu regresso a Lisboa, 25 anos mais tarde, quando ele já possuía uma agenda de almoços semanais em diversos restaurantes e com diferentes convivas, é que os mesmos dois amigos passaram a insistir para que a eles me juntasse sempre que possível. E de bom grado o fiz enquanto eles foram vivos, passando depois a visita habitual desse homem generoso e sábio, para lhe levar notícias da sua Ribeira-Lima ou das intrincadas andanças pelos jornais, mas sobretudo para beber da sua fonte de conhecimento, a luz que abre horizontes, ou dele ouvir a palavra que esclarece e não perdoa a tacanhez.

Em livros que publiquei, especialmente no Memorial do Coração sobre A. M. Couto Viana e depois n’O Puto, deixei-lhe vincada a minha gratidão. No primeiro, pela sua infatigável compreensão e ajuda na reconstrução de factos e, no segundo, pela informação paralela que recolhera quando fez a co-tradução do livro Angola L’Indépendance Empoisonnée (Angola – Independência Envenenada, Edi-ções Flecha) de Georges Le-coff. Cito apenas dois casos de muitos que poderia lembrar, mas não é de mim, e sim dele, que se trata.

Tudo o que dizia respeito à Ribeira-Lima e à Ponte bem-amada de seus avós e trisavós lhe enchia o coração. Daí que quando, em 2007, nasceu a revista LIMIANA, durante os oito anos da direcção de José Pereira Fernandes, Carlos Mi-guel se torne um «indefectível leitor», fazendo as suas apreciações aos números que bimestralmente iam sendo publicados, «sem esquecer amáveis palavras de reconhecimento e incentivo para prosseguir o ideal limiano que, em seu entender, a revista representava e promovia.»
E é José Pereira Fernandes, agora editor do brilhante portal Ponte de Lima Cultural, quem nos declara: «Embora não tenha tido o privilégio de usufruir do admirável convívio com Carlos Miguel durante tantos anos quantos desejaria, a amizade gratificante que se foi cimentando a partir de 2007 revelou-se profundamente enriquecedora, a todos os níveis, com a partilha solidária do seu enorme saber, fruto de uma cultura sólida, de uma notável capacidade de comunicar e de uma memória invulgar, que nos transportava para tempos de antanho. A sua morte deixa um grande vazio em todos os amigos que o viam como um Homem culto, generoso e de grande carácter.»

E é tomando a liberdade de entrar nesse www.pontedelimacultural.pt, cuja pesquisa recomendo vivamente, que ouso transcrever as sentidas palavras de Mário Beja Santos, um dos companheiros imprescindíveis de Carlos Miguel que, desde quando há uns anos ele começou a perder a visão, nunca mais deixou de quase diariamente o visitar para lhe fazer leituras e dar o apoio imprescindível. É assim que Beja Santos explica: «Não há duas amizades iguais, não concebo a minha existência sem este lauto convívio, acompanhando-o nos percalços da saúde que o assediam, e assim nos dessedentamos conversando e eu lendo a quem me escuta tão atento, tão agradecido com a companhia que damos um ao outro.» E mais adiante: «…interrogo-me tantas vezes sobre o grande escritor que se perdeu deixando a nu um coração de ouro, uma memória vibrante, para além da profunda amizade que nos solidifica; este homem tem qualquer coisa de Heródoto, um contador de peripécias sem rival, pois quando a conversa retorna à ancestralidade o seu Minho é o Rossio do nosso mundo.»
Para os Amigos ele continuará a ser sempre a estrela que nos ilumina a memória.

Miguel de Araújo deixa dois filhos: Luís Gonzaga, casado com Sílvia Araújo; e Mariana, casada com José Neves, a quem apresentamos sentidas condolências.

Ricardo Saavedra

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