Por linhas e entrelinhas

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A guerra que resultou da invasão da Ucrânia pela Federação Russa deve servir-nos para refletir sobre a nossa condição humana. Sob variados aspetos, novos e inovadores, esta guerra, mais que qualquer outra anterior, reflete-se em todo o lado, perturba a todos, em qualquer parte do globo, quer pela globalização visual dos seus horrores, a que não podemos ser indiferentes, quer pelo temor globalizado do seu eventual alargamento, ou de um eventual salto para o uso de armas de morticínio massivo, quer, ainda, pela perturbação geral das economias, dos sistemas financeiros, dos mercados e respetivas perspetivas de futuro, de incerteza agravada. 

Acresce a tudo isso a guerra dos espíritos, das interpretações contraditórias sobre as responsabilidades dos interventores diretos e seus apoiantes, sobre as causas originais do conflito, sobre a sua sustentabilidade, duração e consequências, e mais ainda sobre os julgamentos antecipados de culpabilidades e castigos. 

Como podemos constatar, mesmo longe do teatro dos morticínios, a guerra torna-se o tema constante das curiosidades mediáticas, das disputas ideológicas e das controversas posições políticas. Nenhum setor social escapa a implicar-se sequelas da guerra, nem o da atividade científica, nem o da atividade desportiva, nem sequer o da atividade religiosa, setores que, aparentemente, teriam de ser neutros e pacíficos.  À guerra de hoje nada, nem ninguém escapa.

Era adolescente durante a segunda guerra mundial e recordo como eram as curiosidades e as conversas dos adultos de então. Não havia televisão, só uma minoria de gente, mais politizada, seguia pela rádio o evoluir dos avanços e recuos dos exércitos e dos bombardeamentos. A maioria sofria, resignada, os efeitos perversos dos racionamentos alimentares, como uma inevitabilidade. Vivia-se e discutia-se a guerra em termos de nacionalismo: uns eram anglófilos, outros eram germanófilos. Estavam ocultos outros problemas subjacentes, humanamente mais graves, como os sistemas de governação fascista, a aberrante filosofia xenófoba nazista, a duplicidade ambígua da expansão do sovietismo, problemas que minavam as sociedades e alimentavam os ódios políticos e sociais, sob a pretensão aparente de justificadas disputas nacionalistas. 

Era um tempo de tendência generalizada para regimes autoritários, um tempo em que as experiências democráticas, por serem, ainda, restritas e débeis, consentiam que as sociedades regredissem para formas de regulação social e política arcaicas e bárbaras, como as dos regimes despóticos e tirânicos. Nestes, o poder resvala, sob a apatia coletiva, para concentrar-se numa só personalidade forte, nas suas ambições pessoais e seus preconceitos, uma personalidade despótica ou tirânica.

Se a História humana guarda a memória dos que considera seus heróis, guarda também a memória dos seus tiranos e dos seus déspotas. Uns e outros são dominados pelo preconceito da imortalidade. Todavia, com uma diferença fundamental: os heróis manifestam-se na luta pela imortalidade coletiva da coletividade a que pertencem, com a qual se identificam, e que defendem; os tiranos pretendem imortalizar-se impondo-se por si mesmos sobre os demais, sacrificando o coletivo que conseguiram dominar e controlar. Heróis e tiranos, efetivamente, imortalizam-se, mas como luz e sombra da história do poder humano. 

O poder existe por necessidade de a existência humana ser coletiva. Só é compreensível e aceitável que o poder exista e se exerça para o bem comum dos membros da coletividade. Não é compreensível, nem aceitável que exista ou se exerça para privilegiar um grupo (aristocrático, ou oligárquico) ou para privilegiar uma pessoa. A perversão do poder e a possibilidade do abuso do poder (seja ele político, militar, económico, cultural, religioso, etc.), que são uma constante da História, resultam da instabilidade da evolução humana, vocacionada para a criatividade e para a superação dos condicionalismos. 

Um dos preconceitos mais perniciosos da vida humana é o preconceito de uma estabilidade permanente. Resistimos à ideia de mudança. Resistimos à educação para a mudança. Esse preconceito não nos prepara para uma verdadeira democracia, que resista à concentração excessiva de poderes. Daí nasce a apatia social e política, que resvala facilmente para o poder concentrado da tirania, ou para a erosão do poder em anomia e anarquia. As democracias são frágeis, no equilíbrio entre tendências tirânicas e tendências anárquicas e na anulação da tendência para a apatia política. Mas o verdadeiro equilíbrio social e a verdadeira evolução humana só são possíveis pela participação responsável de todos, numa inevitável e relativa instabilidade controvertida, isto é, em democracia.

 José Veiga Torres

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