Por linhas e por entre linhas

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CLERICALISMO

Desde o século XIX as palavras “clericalismo” e “anti-clericalismo” suscitavam iras e violentas diatribes sociais e religiosas. Falar de “clericalismo” era entendido como fazer guerra à Igreja, fazer guerra ao cristianismo. Qualquer observação crítica ao mínimo membro do clero era considerada ofensa à Igreja. Os clérigos, no seu estatuto de poder sagrado, reagiam. A situação não é hoje a mesma.
Hoje, é o próprio Papa que fala contra o clericalismo, e até define o que é o clericalismo. As suas palavras, há uns anos atrás, julgar-se-iam de um empedernido anti-clerical. Em variadas circunstâncias, o Papa Francisco tem verberado contra o clericalismo, mas o tema ganhou uma intensidade e um alcance excepcional na sua Carta ao Povo de Deus (de 20-08-2018). A própria carta é excecional, pelas circunstâncias lamentáveis que a suscitaram (as dores provocadas pelos abusos clericais), pela informalidade e simplicidade do seu discurso (sem distância pontifical), mas, sobretudo, pelo novo horizonte que a Carta faz vislumbrar para o catolicismo e para todo o cristianismo. Os abusos clericais, o Papa não os restringe aos da área sexual, vai muito mais longe, ao problema do poder, e do domínio sobre as consciências, definindo o clericalismo como a «atitude que não só anula a personalidade dos cristãos, mas tende também a diminuir e a subestimar a graça batismal que o Espírito Santo pôs no coração do nosso povo. O clericalismo, favorecido tanto pelos próprios sacerdotes como pelos leigos, gera uma ruptura no corpo eclesial, que beneficia e ajuda a perpetuar muitos dos males que denunciamos hoje. Dizer não ao abuso é dizer energicamente não a qualquer forma de clericalismo».
A partir destas palavras do Papa, a história da Igreja e de todo o cristianismo institucional será outra, mais na procura do “frescor original do evangelho” (Papa Francisco), mas também, certamente, menos pacífico. O Papa, com toda a objectividade, refere-se ao clericalismo dos clérigos e ao clericalismo dos leigos, isto é, dos leigos clericalizados. A conversão das Igrejas, a procura do “frescor original do evangelho”, tem a sua maior resistência nos leigos clericalizados, o que dificultará a participação de todos, na resolução dos pecados dos cristãos. “Sem a participação activa de todos os membros da Igreja, não será capaz de gerar as dinâmicas necessárias para uma transformação saudável e realista”, diz o Papa.
A imprescindível tarefa da conversão do “mundo cristão” é uma tarefa ingente, será longa e não será pacífica, porque o “frescor original do evangelho” irá mostrar, com transparência, que a divisão do povo cristão entre clero e leigos, não é evangélica, não tem fundamento bíblico, tem uma história, que só começou no século terceiro, com uma ideologia de “ordem sacramental e sacerdotal”, sobreposta à concepção de um “sacerdócio comum”, essa, sim, com apoio bíblico. Foi uma história de poder, de históricas imposições, muito longe do amor evangélico. Essa divisão elitista provocou gravíssimas rupturas no “corpo místico de Cristo”. Ainda hoje permanecem guerras doutrinais e inconciliáveis guerras de jurisdição, com pomposas liturgias e outras manifestações sagradas, muito formais, muito chegadas aos poderes e liturgias mundanas, frequentemente folclóricas, que não correspondem ao projecto do evangelho.
Quando for possível perceber as «dinâmicas» originais das comunidades originais, que são as paulinas, as das suas sete cartas autênticas, os únicos documentos de origem apostólica, contemporâneos dos primeiros discípulos e dos primeiros testemunhos pessoais de Jesus, então se perceberá como o evangelho é uma autêntica rebeldia aos critérios mundanos. As comunidades, então, serão verdadeiras comunidades, não só de nome, nem formalidades jurisdicionais, mas serão verdadeiras “igrejas”, isto é, verdadeiras assembleias, onde os que as constituem partilham, sem hegemonias, o que pensam, o que sentem, o que rezam, onde a comunhão seja de verdadeira e profunda relação existencial, não apenas ritual. Dir-se-á que isso é uma “loucura”. O mesmo disseram de Jesus: «não temos razão de dizer que és um samaritano [=um apóstata] e que estás louco?» (Jn.8,48). De louco foi tratado Paulo de Tarso muitas vezes, particularmente quando falou aos pretensos sábios do areópago de Atenas. A loucura cristã, apesar de tudo, revolucionou as mentalidades e os comportamentos humanos.

José Veiga Torres

(Foto: “schoenstatt.org”)

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