Programando roteiros

Author picture

Dia chuvoso, a pedir trabalho resguardado. Toca o telefone, alguém nos avisa que na receção está o Senhor Antero Terroso. Logo nos ocorreu que se tratava do filho de nosso Joaquim Terroso, que há algum tempo partiu para o Além. Não o fizemos esperar, pela cortesia que nos merecem os nossos assinantes e, pensamos, porque se tratava do filho do homem que protagonizou connosco empolgantes diálogos em ricos passeios pela cidade e arrabaldes.

Ao vê-lo, não tivemos dúvidas, já que a parecença com o pai era evidente. Saudou-nos com simpatia. Com um abraço apertado, transmitiu-nos a vontade de, tal como o seu progenitor, ser mais um particular amigo deste jornal e daqueles que não regateiam esforços para o editar. Numa breve troca de impressões, logo nos apercebemos que estávamos em presença de alguém bem diferente do Pai Joaquim. Mais comedido no discurso e a procurar dar a sensação de que estava pouco familiarizado com Viana. Contudo, com vontade de dar continuidade aos diálogos bem participados do familiar querido, como este no fim da vida lhe sugeriu, tal como também na hora da morte nos transmitiu.

Já morava em Viana. “A capital foi sempre muito interessante apenas enquanto lá trabalhei”, disse-nos. O tempo agora era de descanso e de conhecimento da cidade dos seus ascendentes, mas que tão mal conhecia. “Sem perturbar o vosso trabalho, se estiverem de acordo, vamos daqui até Avenida dos Combatentes de gratas recordações, porque foi lá que algumas vezes vi o cortejo das Festas da Senhora d’Agonia, e que agora voltarei a ver, enquanto a morte estiver por longe”, diz-nos, entre um misto de acanhamento e satisfação. 

Subimos e descemos a Avenida duas vezes, porque enquanto se observava o casario de cada um dos lados, acertavam-se ideias para um roteiro faseado por Viana, coisa bem organizada, porque conhecer é a sua maior vontade. “Meu pai Joaquim, falava muito e ouvia pouco. Debitava o conhecimento que tinha sobre a urbe vianesa sem gostar que o interrompêssemos. Sabem bem como ele era: teimoso ao ponto de quase nunca ceder. Mas gostava muito de vós”, acrescentou. A despedida que fez na hora da morte, marcará a família para sempre. 

Já com o roteiro futuro dos passeios mais ou menos consensualizado, prestes a dar por findo o nosso curto passeio, convida-nos a parar em frente ao Tribunal de Justiça. Mirando-o, diz-nos: sabem, meu pai falava-nos muito deste edifício, com projeto do Arq. Francisco Augusto, cuja inauguração se verificou em 1959, com a presença de Américo Tomaz, então Presidente da República, conhecido, ao que se dizia de forma pejorativa, pelo “Corta Fitas”? – Nos sabemos que Joaquim Terroso não simpatizava com o sistema desse tempo. Mas sabia conviver com a ordem estabelecida, como nos dizia, já que eram poucos os que se manifestavam, dissemos-lhe. Antero sorriu e disse que sim.

Descemos para voltar à redação do jornal, no cruzamento da Rua Manuel Espregueira, prestes a retomar o caminho, olhou à esquerda e murmurou, como que com receio:    Ah, na  esquina do outro lado funcionou o café do Senhor Esteves. Meu pai, na década de 1980, quando vínhamos a Viana, passava lá parte do tempo. Entrava na cavaqueira com toda aquela gente, assumidamente de esquerda, que quase só falava de política e abominava o “tempo da outra senhora”, como referiam. Meu pai que nunca gostou do Estado Novo, também não se assumia oposicionista. No fundo, penso bem que o era, até pelo encanto com que o via a interagir com aquela gente. Boa parte deles, segundo compreendi, foi perseguida pela Pide. Recordo-me de um Senhor chamado Orlando, ao que se dizia, uma vítima do Salazarismo.  – Já faleceram quase todos, dissemos-lhe. – Sim imagino, já lá vão 40 anos. Encaminhamo-nos para o ponto de partida.

À porta despediu-se afavelmente. 

– Posso dizer um até breve. – Com certeza, Caro Antero. No nosso próximo encontro caminharemos até ao “Largo das Almas”, o nosso ponto de partida para a primeira etapa do roteiro combinado. 

– Até lá, então…

Outras Opiniões

Os leitores são a força e a vida do nosso jornal Assine A Aurora do Lima

O contributo da A Aurora do Lima para a vida democrática e cívica da região reside na força da relação com os seus leitores.

Item adicionado ao carrinho.
0 itens - 0.00

Ainda não é assinante?

Ao tornar-se assinante está a fortalecer a imprensa regional, garantindo a sua
independência.