Puritanismo hipócrita

A. Lobo de Carvalho
A. Lobo de Carvalho

Por definição, as leis são gerais e abstractas, o que significa que se destinam a todos os cidadãos (refiro-me ao nosso território, evidentemente), necessitando normalmente de uma aclaração ou regulamentação para poderem ser aplicadas e produzirem efeitos. Mas a realidade mostra que o sentido com que são produzidas é muitas vezes ignorado e adulterado havendo muita manipulação, conforme os interesses em confronto.
Por parte de actores da Justiça, organizações defensora dos direitos civis e não só, tem havido, com mais ou menos interesse, uma dinâmica de censura em relação ao facto de fotos de criminosos, alegadamente tiradas por elementos policiais, aparecerem nas redes sociais, como aconteceu recentemente com três indivíduos detidos que fugiram de um Tribunal, mas que rapidamente foram recapturados. Foi um escândalo social e não se falou de outra coisa durante mais de uma semana, com todos os órgãos de comunicação a darem grande relevo. Mas, no meu ponto de vista, apenas por terem sido elementos policiais os autores de tal publicação, já que se fosse um qualquer jornal ou TV nem se teria falado no assunto.
Não vejo, com efeito, onde esteja o mal da publicação das fotos nas redes sociais, já que se trata de criminosos perigosos, o que até não deixa de ser positivo para que as pessoas possam conhecer os seus rostos, ficarem atentas e se precaverem dos actos de delinquência. Onde está o mal para tanta polémica, tanta censura e até para levantar processos aos autores da publicação? Responder-me-ão que está em causa o respeito constitucional pelo direito à privacidade e dos direitos e garantias do cidadão. Mas será que isto funciona mesmo, ou não passa de uma grande farsa e de um puritanismo aberrante? Ora vejamos.
Nos diversos processos que correram, ou correm ainda, nos tribunais, em que figuram como arguidos indivíduos que foram, e alguns ainda o serão, socialmente mais conhecidos como figuras públicas (José Sócrates, Ricardo Salgado, Duarte Lima, Arlindo de Carvalho, Miguel Macedo, etc., etc…) e muitos outros, detidos ou em liberdade caucionada (Pedro Dias, Palito, indivíduos de claques de futebol…), não se viu nenhum esforço no sentido de censurar objectivamente televisões, jornais, rádios e redes sociais, por terem devassado a vida destas pessoas, chapando-lhes a fotografia em jornais e revistas e filmando-lhes os seus passos, expondo publicamente, e até de forma despudorada, muitas vezes, a sua privacidade. Ninguém se insurgiu, não houve Inspecções Gerais de Ministérios a levantar processos, não houve organizações dos direitos individuais, liberdades e garantias dos cidadãos a reagirem, contrariando este comportamento dos media. Pelo contrário, até houve uma certa avidez generalizada no acompanhamento destes casos! Mas os polícias, e só por serem polícias, tinham de arcar com as consequências!
O que chamar a isto? Hipocrisia pura, porque à face da lei todos os cidadãos são iguais. Pelo que se para uns houve e continua a haver toda a liberdade de intrusão na vida privada com a publicação de fotos e filmagens nos órgãos de comunicação social, não consigo entender tanta verborreia e tanta censura por parte de entidades oficiais, no apoio dispensado a três criminosos altamente perigosos, que tantos danos causaram a cidadãos indefesos. Até porque as vidas deles, sendo, evidentemente, importantes por se tratar de seres humanos, ou bens jurídicos protegidos, não são de forma nenhuma mais importantes do que as de outros a contas com a Justiça. Porquê, então, este puritanismo ridículo e este espectáculo degradante?
É meu convencimento de que neste país existem leis em demasia e por isso mesmo até já caem no esquecimento. Mas há, sobretudo, a estulta mania de nos quererem tornar solidários com uns “coitadinhos”, e exigentes com outros, quando o facto é que navegam todos nas mesmas águas da infracção às leis, não sendo aceitáveis diferenças de procedimentos. Sem quaisquer ambiguidades direi que não me repugna que os criminosos tenham as fotos publicadas na imprensa ou nas redes sociais, porque é a isto que estamos habituados desde que a democracia foi conquistada, em que tudo foi sendo permitido no âmbito das “amplas liberdades” por tantos reclamadas.
Acabe-se com a hipocrisia da tantas organizações que se dizem defensoras do direito à privacidade e haja alguém com autoridade suprema que faça, simplesmente, cumprir as leis com oportunidade, ou então teremos um país à deriva. A igualdade e transparência de procedimentos na relação entre os órgãos de poder e os cidadãos é uma matéria que deve manter-se actual, sem que haja excepções para ninguém. Quando isso acontecer talvez os abusos e excessos acabem por ser mitigados e tenhamos, então, uma sociedade mais consciente no plano ético.

(Foto: “O Jornal Económico – Sapo”)

Outras Opiniões

Os leitores são a força e a vida do nosso jornal Assine A Aurora do Lima

O contributo da A Aurora do Lima para a vida democrática e cívica da região reside na força da relação com os seus leitores.

Item adicionado ao carrinho.
0 itens - 0.00

Ainda não é assinante?

Ao tornar-se assinante está a fortalecer a imprensa regional, garantindo a sua
independência.