Que nome dar ao inominável?

José Veiga Torres
José Veiga Torres

Quando se andava na catequese, outrora, não sei se ainda agora, ensinava-se a “não dizer o nome de Deus em vão”. Apesar desse ensinamento, fala-se e discute-se sobre Deus como se fora algo ao alcance da nossa linguagem.

Um dos problemas da espécie humana, na sua ânsia de conhecimento, é a sua capacidade limitada de exprimir e transmitir a verdade das suas experiências. A espécie humana distingue-se das outras espécies, pelo seu inconformismo com as suas limitações, e pelo impulso a superá-las, criando processos e linguagens de superação, melhorando o seu modo de vida. 

Esse inconformismo carateriza-se também pelo seu indeterminismo. Enquanto as outras espécies se comportam deterministicamente segundo as suas “leis naturais”, físicas e biológicas, a espécie humana pode intervir nessas leis e manipulá-las. Só a espécie humana tem essa capacidade, para seu bem ou para seu mal. Não é uma espécie absolutamente determinada (por algum implacável destino), só relativamente, enquanto relativamente condicionada pelas leis físicas, biológicas e sociais. O inconformismo e o indeterminismo da espécie humana manifestam-se, também, no livre arbítrio, na liberdade. Daí o risco de a espécie humana, por maldade, ou por irresponsabilidade, destruir as condições de vida planetária. 

Por estas características fundamentais, a espécie pode evoluir nos seus conhecimentos e nas linguagens, através das experiências pragmáticas, nas relações dos seres humanos entre si e nas relações com a natureza. Até surgir, em finais da Idade Média, o sistema de produção de Conhecimentos Científicos, os conhecimentos obtinham-se por mero pragmatismo vivencial, e por acumulação de experiências pragmáticas. Com a Ciência, a espécie humana deu um salto qualitativo na obtenção dos conhecimentos, por processos de experimentação (experiências provocadas) e de abstração, indutiva ou dedutiva, formulando teorias explicativas.

A evolução científica e tecnológica comprova a consciência que o ser humano tem das suas limitações e da sua misteriosa capacidade de as superar, ainda que relativamente, porque é incapaz de alcançar a amplitude da total realidade das coisas, e de dar às coisas o nome que lhes seja verdadeiramente próprio. O confronto entre as teorias mais avançadas do nosso tempo, a da Relatividade Geral (Einstein) com a da Mecânica Quântica e do Princípio geral da Incerteza (Heisemberg), mostra-nos essas limitações, o inconformismo que elas provocam e o indeterminismo nelas latente. 

A evolução das teorias científicas (nunca definitivas) precisa de criar linguagens próprias para cada disciplina. As linguagens comuns não lhe servem. O mesmo acontece em outras experiências humanas, como nas experiências estéticas. Tal como a ciência cria fórmulas e equações abstratas e simbólicas, a música apoia-se numa escrita simbólica própria. A poesia é também uma forma de linguagem incomum. A religiosidade, que é mais misteriosa que qualquer outra experiência humana, mais dificilmente tem linguagens apropriadas para se exprimir: adota linguagens simbólicas variadas, em conformidade com a variedade de sentimentos, de culturas e de circunstâncias conjunturais.

Não se confunda uma linguagem com a experiência que ela tenta exprimir. Uma coisa é a experiência, outra a interpretação que dela se faz, pela linguagem. No Antigo Testamento, os hebreus ora interpretavam Deus como Senhor dos Exércitos, ora como Criador do Universo, ora como Juiz implacável. Estas interpretações ainda persistem em muitos crentes. Jesus de Nazaré, rompeu com essas interpretações negativas, valorizando uma interpretação de Deus como “Abba” (Pai) misericordioso, acolhedor, origem de todo o bem. A exclamação de Jesus no Calvário, “Pai, Pai, porque me abandonaste?”, é um grito humaníssimo de angústia, como se dissesse: “Pai, como é que isto é possível?”.  

A tragédia de Jesus crucificado só era possível pela liberdade perversa de Pilatos, dos Pontífices, e da traição de Judas. A liberdade, dom concedido à espécie humana, um dos aspetos do seu inconformismo e do seu indeterminismo, foi concedido ao ser humano para evoluir, por si mesmo, para o bem, para o melhor possível. Deus não impede que o ser humano use a liberdade de modo perverso.  Infelizmente, muitos dos seres humanos servem-se do dom da liberdade (do seu livre arbítrio) contra a liberdade dos outros, sobretudo quando estes lutam pela verdade e pela justiça. Deus respeita a liberdade que concedeu à espécie humana. Fazer vítimas é obra da maldade de alguns, mas suficiente para o mal-estar de todos. 

Deus como criador? É também uma expressão interpretativa do mistério da origem do Universo. Curiosamente, a palavra Deus (Theos, em grego) é de origem indo-europeia (3º milénio a.C.), significando “luz”, numa interpretação de Deus como origem da vida, pela experiência primária do Sol, sem o qual não há vida. Um grande teólogo recentemente falecido, John Shelby Spong, tentando uma expressão interpretativa de Deus para o nosso século de Ciência e Tecnologia, sugeriu a expressão “energia”.

As múltiplas tentativas de exprimir a experiência de Deus, significam que é inominável, mas que o ser humano necessita de o exprimir à sua maneira. Nenhuma palavra humana é capaz de exprimir o inominável. Perguntar se Deus existe ou não existe é um absurdo, porque o verbo existir só é aplicável àquilo que a materialidade humana pode experimentar, ao mundo do contingente, do temporal e espacial. Também não tem sentido falar de provas da existência de Deus. Trata-se de uma realidade não pertencente à limitada contingência da Ciência, a qual nem sequer pode obter um conhecimento total das realidades sensíveis do seu âmbito. 

Diz-se que nomear Deus é uma questão de Fé. Mas, sendo uma questão de Fé, não pode desvalorizar-se em confronto com a Ciência, porque o processo científico é também um processo de fé, por mais objetivo que pretenda ser. Todo o conhecimento humano, mesmo o científico, não alcança toda a verdade das coisas, interpreta-as com teorias que nunca são definitivas, e que obrigam a confiar (ter fé) nos que produzem e difundem os conhecimentos. Há sempre um mistério no conhecimento como no comportamento do ser humano.

O inominável não deixa, por isso, de ser uma realidade. Ser absoluto é fundamento dos seres relativos e contingentes que nós somos. Na liberdade que nos concedeu até nos permite que O não reconheçamos.     

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