SERENATA DE SCHUBERT

Sidónio Ferreira Crespo
Sidónio Ferreira Crespo

Hora de silêncio, de paz e de recordar, aliado ao misticismo, meditação e ao amor. Acolhido pela sombra de um frondoso carvalho sentara-se um velho violinista, alquebrado de forças pelo carregar da idade. Dobrara, já, o cabo dos cem anos. Conservava, fielmente, os costumes dos seus antepassados. Usava extensa barba e cabelos bastante compridos, a mostrar um certo desleixo, seguindo a inclinação de quase todos os artistas versados na verdadeira arte dos sons.

– Dizem que a sonoridade musical faz crescer os cabelos. – Afirmava, com frequência.

Vinha evocar, memoriando, protegido por essa enorme árvore a vivência decorrida, esse período que passou e não voltará, quando ca­minhava pela existência fora, que parecia querer imitar, em Junho, o voar dos bandos de pardais.

O pai, pessoalmente, nunca o conheceu. Falecera antes do seu nascimento. Fora mobilizado para combater na Primeira Guerra Mundial e acabou por morrer nas trincheiras dos campos de batalha de Flandres, ao lado de muitos outros militares na fase da mocidade, a que os his­toriadores chamaram “a geração perdida”. Recordava-o, sim, através de fotografias.

A mãe foi o seu amparo enquanto viva. Deixou-o, ainda, muito no­vo no cenário da puberdade. Sentiu, bastante, a sua falta no caminhar da adolescência. Nunca esqueceu o que ela mencionava, por vezes, com um sorriso carinhoso a despontar na face, que na era da infantilida­de, porventura, quando tinha alguma rabugice ou chorava se o embalas­se, a cantar, no berço pequenino, acabava, facilmente, por adormecer. Como era doce, salutar e reconfortante a lembrança desse quadro fami­liar, que pela vida fora o tinha prendido e encantado, numa auréola de benevolência e saudade.

– Mostrei, desde muito cedo, a tendência para o universo das vo­zes e do som – referia, convicto, em conversa.

Aproveitando essa sombra fresca e acolhedora parou, para obser­var, também, calmamente, o seu interior na conduta artística que de­sempenhou. E foi, conjuntamente, ao abrigo dessa folhagem que, pela primeira vez, o violino passou a desenvolver vibrações de uma forte musicalidade em memória dos antigos professores, que há muito haviam deixado o convívio humano.

O Artista, agora sózinho no mundo, acompanhado, somente, do seu instrumento tocante, levantando os olhos para o céu, balbucionou uma fervorosa prece por simpatia e gratidão para com os seus falecidos mestres no dever de musicar. Seguidamente, tomou em suas mãos o arco e perpassando-o pelas cordas do violino começou a tocar uma sinfonia nostálgica que exprimia, ao vivo, o seu estado de espírito.

Muito ao longe, ouvia-se um coro sonoro e melodioso de cânticos, que ecoavam, marcadamente, através da planície.

– O meu corpo agita-se e os sentidos ficam atraídos ao escutar a harmonia destes hinos. – Falava, para si.

Anoiteceu. Das regibes etéreas, a lua, com o seu iluminado rosto, parecia sorrir para o músico, que sempre vivera enamorado da sua bele­za infinda. O violino ora gemia, ora suspirava longa e docemente, agi­tando os recantos mais íntimos do seu ego.

Os olhos tristes deste poeta dos sons encheram-se, então, de lá­grimas a correrem-lhe, silenciosas, pela face. Fechou, por momentos, a vista e suspendeu o arco, permanecendo, alguns instantes, em posição imóvel. Depois, retomando, de novo, o arco, perpassou-o, com vigor, pe­las cordas do violino, num lamento brando, mas carregado de melancolia.

Na amplidão celeste suaves vozes continuavam a cantar…

 

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A lua, no firmamento, a pouco e pouco, amortecia a sua luz. Reina­va, fresca e acolhedora, a madrugada. Passou a ouvir-se o canto matutino das aves. Aos agradáveis gorjeios da passarada, entre a folhagem do arvoredo, aquele artista, que sempre vivera sequioso do sublime, adorme­ceu, suavemente, embriagado por toda aquela maravilha de sonoridades.

Começou a sentir que lhe faltava a terra debaixo dos pés, o carva lho copado, esguio, de enorme ramagem, tinha ficado para trás. Notou que, de mansinho, alguém, a voar, o ia levando para o céu, passando a sonhar, sempre a sonhar, sonhos lindos e divinais…

 

Nota: – Este conto, por vontade do autor, no segue a regra do novo acordo ortográfico.

 

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