Teletrabalho, mas… (2)

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Retomo o tema do teletrabalho certo da enorme pressão que se irá exercer para que se imponha como padrão normal de funcionamento.

Nas últimas semanas todos ouvimos a frase de que após a pandemia nada será como dantes, mas será assim? Será que confundimos desejos com uma hipotética realidade que já damos como segura embora ainda não se saiba nem de perto nem de longe em que consiste? E, quando dizemos que nada será como dantes a que nos referimos?

Um aspeto central da nossa sociedade é a sua organização baseada na propriedade privada dos meios de produção com o objetivo da acumulação de riquezas e de lucro. Este principio, com todas as variantes introduzidas ao longos dos últimos séculos, designadamente com o capitalismo financeiro desenvolvido nas últimas décadas e hipertrofiado pelas politicas neoliberais, não dá sinais de desaparecer pelo que, quando se afirma que nada será como dantes a que é que nos estamos a referir?

Mais uma vez, como tantas vezes acontece confunde-se a espuma com a substancia. E aqui entra o teletrabalho.

Seduzidos pela miragem de “se estar em casa”, de se “fazer quando apetece… e se apetecer”, “longe do chefe…” os próprios trabalhadores irão optar por esta forma de trabalho sem anteverem as consequências que o mesmo lhes irá trazer.

Além das duas consequências que apontei no trabalho anterior, há acrescentar mais algumas.

Em Portugal, no meio laboral, enviar trabalho para ser feito em casa não foi novidade até ao final do séc. XX, desde a colocação de teares em casa das operárias, aos arremates das peças têxteis, à confeção de sapatos. Se esta prática acabou foi sobretudo porque a deslocalização da industria de mão de obra intensiva permitiu descobrir mão de obra ainda mais barata noutros continente, particularmente no norte de África, na Indochina e na Ásia.

Agora, no setor dos serviços, com o teletrabalho, abrem-se novas perspetivas de se obter o mesmo trabalho por menor custo. O trabalhador passa a ser pago pelo resultado da sua produção e não pelo tempo gasto em o produzir. Já hoje, recebemos telefonemas em casa com propostas de contratos ou de fornecimento de serviços, em que a pessoa do outro lado, muitas vezes a trabalhar em casa, é paga apenas pelo número de contratos concluídos (e não pelo número de telefonemas que realizou) o que aumenta a pressão, insegurança e ansiedade.

Ligado à circunstância de estar em casa, fisicamente afastado dos centros de decisão, este novo “trabalho doméstico” acarreta, a par da sua desvalorização, por que “doméstico”, com tudo o que isso significa, a desvalorização do próprio trabalhador que se vê afastado de qualquer possibilidade de progressão profissional, de valorização, e em último lugar, de melhoria de salário a não ser que aumente ainda mais a sua produção à custa de mais horas de trabalho, muito mais do que faria se estivesse a trabalhar no espaço físico da empresa.

Aníbal Fonte

Médico Psiquiatra

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