Teletrabalho, mas…

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Como se de repente tivesse sido descoberto o Santo Graal, as noticias das últimas semanas encheram-se com apelos ao teletrabalho. Trabalhar sem sair de casa passou a ser a grande panaceia, o mito que tudo parece resolver. Por sua vez ele parece vir ao encontro do profundo desejo de libertação do trabalho, poder fazer as coisas apenas quando se deseja e, mais ainda, fazer aquilo que se deseja. Que invejas não desperta a quem não está em teletrabalho ou não pode deslocar o trabalho para casa? Que comentários não desperta, do género “tu agora é que estás bem… podes trabalhar sem sair de casa”!

Paulatinamente, o teletrabalho passou a ser o equivalente ao trabalho das “donas de casa”: “não custa nada”, “não é preciso sair de casa”, “é fácil… só fez isso… tanto tempo para nada…”, “deve ter dado para dormir… e ainda querem ganhar…”. Entretanto, por traz deste apelo escondem-se riscos violentos que os agentes das novas formas de organização do trabalho não deixarão de explorar. Em primeiro lugar diluísse a divisão casa/emprego, com espaços e tempos próprios. Uma distribuição que tem uma função estruturadora da organização psíquica da pessoa; ajuda a separar a atividade profissional do lazer, a distinguir os tempos de tensão, de concentração, de esforço, dos tempos de descontração, relaxamento, de “il dolce far niente”. Ao diluir-se esta separação não é o trabalho que adquire uma fação lúdica, é o espaço e o tempo lúdico que se estrita, que adquire uma dimensão de inutilidade, que fica absorvido pela “obrigação” de ser ocupado por uma coisa útil. Quer-se um exemplo? A partir da revolução industrial disseminou-se até entrar no corpo jurídico a expressão “dias úteis”, mas não são só os dias em que a fábrica trabalha, por extensão são os dias em que a vida da pessoa é útil, os outros são dias inúteis…

Em segundo lugar a medida do trabalho deixa de ser o tempo (esforço) para a realização da tarefa expresso no salário-emprego para ser a atividade, o produto final. Como produto “feito em casa” o seu valor é também menor, sentido como “mais fácil”, requerendo menos competências, mais trivial. Nessa ordem, porque pagar por uma coisa que até se faz em casa, se calhar até na cama? Não é o que se dizia do trabalho das donas de casa? Para as forças neoliberais, depois das hesitações iniciais na implantação do teletrabalho este desenha-se como o caminho a seguir na redução do valor do trabalho e na imposição de ritmos de produção mais intensos.

Como já acontece com os trabalhos escolares, em que cada professor aumentou os trabalhos feitos em casa “porque feitos em casa …”, “… não custam nada…” também a pressão para fazer mais e mais rápido vai aumentar “porque feitos em casa… não custam nada…”. Subjacente a esta lógica, o medo da perda do ordenado, o medo da perda da encomenda, o medo da precarização vai tornar o trabalho ainda mais violento… Teletrabalho, mas…

Aníbal Fonte
*Médico Psiquiatra

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