(VIII)- Animador cultural no Caramulo e arredores

Carlos Fidalguinho
Carlos Fidalguinho

Voltando à dura realidade. Ficou demonstrado, à sociedade, que, mesmo internado num sanatório, o Zé António não tinha cuidado nenhum consigo, uma atitude que induzia os outros a desaperceberem-se do seu real estado de saúde: a sua contagiante simpatia, pode bem dizer-se, acabava por ser-lhe grandemente prejudicial. No Caramulo, ali chegado no Verão de 1962, num grupo espontâneo de quinze “estagiários” que mais parece uma excursão (nas suas próprias palavras) reunido em frente ao Sanatório Santa Maria, ele é o único com o olhar fixo no horizonte —, fez de pronto amizade com o responsável pela gestão corrente dos sanatórios, José Júlio de Almeida, como ele habilitado com o curso comercial mas muito mais evoluído nessa área; não demorou muito a ganhar a plena confiança dele, logrando ainda nesse ano a concessão dum pequeno espaço de arrumos para ali improvisar o seu estúdio, não só de músico amador como também de pintor e ceramista. Sim, durante todo o tempo que lá passou, o Zé Amorim — nome que além lhe fixaram — foi o animador cultural por excelência da vila do Caramulo, dentro e fora do grandioso complexo sanitário (ao todo, desde 1922, foram dezanove os sanatórios paulatinamente implantados naquela localidade). Muito tocou, cantou, desenhou e, sobremodo, pintou, pintou a manta! Pintou cartazes para os mais diversos eventos e festividades; pintou os primeiros cenários do Clube dos Modestos, grupo teatral ainda em actividade; pintou, com decorações modernistas, masseiras, louceiros, guarda-fatos e toda a sorte de móveis nas casas de famílias amigas; pintou vitrais de diversos formatos, hoje praticamente todos destruídos; pintou painéis que ainda permanecem no museu local, o Museu do Automóvel; pintou azulejos e outros artefactos cerâmicos que ele próprio cozeu num forno adaptado, como aprendera a fazer na fábrica da Meadela. A sinalização turística do Museu do Caramulo (o calhambeque) em azulejo localizadas à ilharga dos principais cruzamentos rodoviários desde Viseu a Águeda e para sul, é uma obra original do Zé António.

Amplamente reconhecidos os seus talentos de artista plástico, o próprio administrador daquela que era então a maior estância sanatorial da Península Ibérica, filho do Dr. Jerónimo de Lacerda, o visionário médico tondelense fundador, encomendou-lhe vários trabalhos, com a exigência de que seria a pagar, modestamente; pese embora a boa intenção, tão pouco esse gesto franco, ao fim e ao cabo, o favoreceu deveras: quando, do que ia sobrando das despesas virtuosas com os materiais que consumia, conseguiu retirar aos vícios indomáveis (tabaco e álcool, o outro era voluntariosamente grátis) dinheiro que chegasse, comprou em segunda mão a motorizada que acabou por ser o recidivo instrumento do seu sacrifício. Há um ano, em 16 de Dezembro (véspera do 79.º aniversário do Amorim), falei ao telemóvel com o Zé Passos — que, para minha total surpresa, me informou de que estava há dois dias hospitalizado, à espera de ser submetido a uma melindrosa operação cirúrgica1. — a respeito deste seu condiscípulo, e ele, um tanto comovido ao recordar, como de imediato frisou, o seu inesquecível «colega de turma e parceiro de carteira» na Escola Comercial, foi peremptório: o Zé António, que «tocava, cantava e pintava de modo espontâneo», tinha como que «essa necessidade básica, era», ainda palavras suas, «uma jóia dum rapaz, como costumavam dizer as nossas mães, só que muito desprendido da vida… uma tendência que, com o tempo, se agravou». Chegou a ralhar-lhe, brandamente — disse ainda, estimulado, este velho amigo, desfiando não de todo gratas memórias —, quando ele aparecia em sua casa de mota, após uma viagem directa do Caramulo a Viana, excepto duma vez em que trouxe uma pendura até ao Porto, na ânsia de matar saudades da família e da malta amiga. Chegava exausto, com fome e com sede, mas feliz: tendo por meta esse prazer sadio — digo agora eu —, os riscos e, mais, os reais malefícios da viagem, para ele, não pesavam nada.

1 – Tendo sabido logo depois, pelo Amândio (Passos Silva), o irmão mais velho, do que se tratava, uma patologia ainda não completamente debelada, aqui lhe expresso os meus sinceros votos de plena recuperação, desejando que estoutro querido amigo possa brevemente retornar ao são convívio da família.
(continua)

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