XVI – Dominguez

Américo Carneiro
Américo Carneiro

Manolette, ou seja, Manoel Laureano Rodríguez Sánchez (1917 – 1947), cordovês fogoso que levou a arte de tourear (e de matar) ao expoente máximo, tornou-se um símbolo nacional de Espanha após o final da Guerra Civil. Criador de um estilo de referência que incluía várias “sortes” (“suertes”) e “passes de muleta” (destacando-se a popularizada “Manolettina”), de paragens e movimentos impressionantes de precisão, Manolette levava as multidões ao êxtase e era garantia de “estocada” fulminante para todos os melhores e mais possantes touros que alguma vez lhe fizeram frente.

Manolette gerou um verdadeiro culto, foi venerado como um semideus pelas multidões aficionadas que o seguiam para todo o lado.

Até que, um dia, na cidade de Linares, “El Manolette” defronta o gigantesco “Islero”, um touro “Miura” (nome do ganadeiro que apurou esta raça de gigantes). “Islero” arremete, centenas e centenas de quilos numa locomotiva de carne, ignora todas as sortes, passes e movimentos hipnóticos e, de uma “estocada” só, fulminante, rasga a coxa direita de Manolette, atinge-lhe a artéria e causa-lhe uma morte vertiginosamente rápida!…

Assim morria o semideus Manolette, da mesma “compassiva” morte que havia proporcionado a tantos e tantos “Isleros” e perante as mesmas incendiadas multidões apoteóticas.

Neste quadro, o mítico touro de Espanha, que simboliza a força e a paixão no seio da Natureza, defronta o mítico homem de Espanha, senhor da razão e da astúcia que lhe proporcionarão sucessivas vitórias ao longo dos milénios como que num constante tributo ao Minotauro (Creta, origem quase perdida da memória das “touradas”) e ao seu “matador”, Teseu.

Sendo assim, o touro, na sua grandeza material, vem a ocupar a quase totalidade da tela até vir a ser “travado” pelo capote vermelho e a muito esguia e vertical mas firme figura do toureiro. Fechados no semicírculo da arena e dos corpos apertados dos aficionados, assemelhando-se a encarcerados no Labirinto cretense, as suas figuras chegam-nos aos olhos definidas por linhas simples, cheias de dinamismo, que virão a resolver-se no ímpeto agigantado de um que esbarra no capote ilusionista de outro que se mantém firme na vontade e na estratégia. As decisões tomadas tanto por um como por outro partem das minúsculas cabeças terminais (e de certa forma, esvoaçantes) destas figuras avantajadas. Estas cabeças quase desaparecem contra o céu e ao alto da tela, enquanto mudamente se fitam, ao mesmo nível e iguais em tamanho. Meditação perfeita.

Ou muito me engano ou estamos perante a demonstração de que, em Arte, a Abstracção * é possível e materializável e que o Abstracto ** vive, em maior ou menor parte, até atingir uma relativa “pureza” nas obras de arte.

Tão simples (ou tão complicado) como isto. Valham-nos as obras de génio para o entender em toda a extensão. E com toda a clareza.

[ * e ** : “Abstracção (Lat. abstractione), s.f. …, separação mental das partes de um todo…” / “Abstracto (Lat. abstractu), adj. Que designa uma qualidade separada do objecto a que pertence…” – Pág. 13, 2.ª coluna, “Dicionário da Língua Portuguesa de Fernando J. da Silva”, Editorial Domingos Barreira, Porto, 4.ª Edição, 1984.]   

N. R. – O Autor não segue as regras do novo Acordo Ortográfico.

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