“Teremos um problema grave no que diz respeito à subida do nível do mar”

Inundações rápidas, ondas de calor, furacões, secas e outros fenómenos extremos vão passar a ser mais frequentes também em Portugal, na sequência do aquecimento global.
Na radiografia traçada pelo presidente do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, Miguel Miranda, há áreas em que ainda é possível atuar e fazer abrandar a bola de neve. Noutras, já não há nada a fazer.

O último relatório de avaliação do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) foi classificado por António Guterres como “um alerta vermelho para a humanidade”. O que é que está a acontecer ao clima na Terra?
O que está a acontecer é que a temperatura média continua a aumentar, porque os gases de efeito de estufa na atmosfera continuam a aumentar. Apesar de todas as medidas que têm sido tomadas, em termos reais, as concentrações continuam a subir. Um dos efeitos deste aumento de temperatura é que a dinâmica da atmosfera está a sofrer alguma variação. Essa variação, nalguns casos, está a dar origem a fenómenos de tempo extremo que estão a afetar fortemente pessoas e regiões de todas as latitudes. Pela primeira vez, não há qualquer dúvida do que está a acontecer à dinâmica da atmosfera. O que nós não sabemos ainda é o que é que isso significa para cada um de nós.

Há uma ligação direta e inequívoca entre a ação humana e o que está a acontecer ao clima?
Não há hoje em dia nenhuma dúvida sobre esse assunto. Que o CO2 [dióxido de carbono] na atmosfera leva ao seu aquecimento é conhecido pela Física desde o século XIX. É uma coisa completamente estabelecida pela ciência. Nem sequer é muito complicado de perceber o mecanismo. Que a ação humana é que leva ao aumento da concentração de CO2 também não há dúvida no essencial. Nós sabemos hoje em dia quais é que são as variações de CO2 na atmosfera que têm origem natural e aquelas que têm origem humana. Por exemplo, se vir o registo do CO2 na atmosfera na Terceira, para falarmos do caso do Atlântico, em que as medições são feitas perto da Serra de Santa Bárbara, onde não há indústria nem nenhuma fonte próxima de CO2, é capaz de ver que a variação de CO2 ao longo do ano corresponde à variação das estações e à variação do ciclo vegetativo. O sistema responde com alguma rapidez e não há dúvida nenhuma que temos primavera, verão, outono e inverno. Só que essa variação anual também está em cima de um trend e esse trend está sempre a subir desde que começou a revolução industrial. Diz-se: “mas já houve épocas da história da Terra em que tivemos concentrações de CO2 superiores à atual”. Já, não havia era o homem. A Geologia ensina que a Terra sofreu enormes variações ao longo da sua história e por isso é que temos, por exemplo, argilas vermelhas. As argilas vermelhas foram criadas numa altura em que atmosfera tinha um conjunto de características que não são as de hoje.
Quando diz que não há dúvida nenhuma entre a ação humana e o que está a acontecer ao clima, a verdade é que temos negacionistas, tal como nas vacinas.
Há quem negue no sentido de dizer, sim, mesmo que isto seja ação humana é preferível vivermos com este risco do que tomarmos medidas que vão baixar muito a qualidade de vida das pessoas. Na ideia de que se fizermos grandes restrições à emissão de CO2 a qualidade média de vida das pessoas pode baixar. Esse risco existe. Aliás, nós estamos de certa forma a experimentá-lo, porque a partir do momento em que uma parte da gestão do CO2 atmosférico passou para uma gestão económica que se chama mercado do carbono, há efeitos nos preços e nos custos das opções que são feitas. E a questão é saber até quando é que podemos aguentar esta mudança. Depois há um outro aspeto. Quando nós temos uma mudança, temos quem ganha e quem perde. O que vai acontecer é que o Saara passa um bocadinho mais para norte. Isso quer dizer que os países do Norte vão ter uns invernos mais tépidos e uns verões mais brilhantes? Vamos apenas mudar o clima de latitude? Devo dizer que não é verdade. É uma ideia simplista, mas que não corresponde à verdade porque a atmosfera é um sistema dinâmico mais complexo do que isso. O que se passa é que nós tivemos uma situação que correspondia a um certo tipo de estabilidade ao longo destes séculos e interrompemos essa estabilidade.

Sabemos qual será a nova estabilidade?
Existem projeções para a nova estabilidade, mas para sabermos qual é a nova estabilidade temos que, pelo menos, estabilizar o que estamos a fazer. Ora a humanidade está muito longe de estabilizar as emissões e enquanto continuarem as emissões continua o aquecimento. Qual é o limite máximo de aquecimento que podemos aguentar? O que foi fixado no Acordo de Paris foi 1,5 graus [centígrados].
Mas vamos ultrapassar isso.

Nessa altura havia quem dissesse que o que o Acordo de Paris propõe é ridículo, não vai dar efeito praticamente nenhum. Bem, tomáramos nós que o Acordo de Paris seja cumprido. E se nós passarmos 1,5 graus e se ultrapassarmos 2 e 2,5? 
E vamos passar?
E vamos passar. O que diz o relatório é que esse limite de 1,5 vai ser conseguido dentro de alguns anos, o que significa que está ao nível da minha vida.

Que clima estamos a ter ou vamos ter em Portugal? Não eramos um país de furacões, por exemplo, e agora somos.
Não eramos um país atingido nem por furacões nem por tempestades tropicais. Temos tido mais atividade extrema do lado do Atlântico Norte e em particular nos Açores. Já tínhamos alguma coisa no passado e agora tivemos o Leslie.
Que atingiu fortemente a zona de Leiria, por exemplo.
Seguimos ao minuto nesse dia, cheios de receio que ele fosse passar numa área urbana muito densa. Felizmente, não foi o caso. Mas tão importante como o Leslie foram os fogos de junho de 2017. Nós não somos políticos, não temos nada a ver com política, certo? Em 2017, o que aconteceu em junho foi um fenómeno atmosférico profundamente anormal para aquilo a que estamos habituados.

Estamos a falar dos tais fenómenos extremos?
Estou a falar de um fenómeno extremo, estou a falar do downburst que foi o mais bem descrito downburst alguma vez verificado na Terra por uma razão infeliz. É que devido aos incêndios de Pedrógão havia muito fumo no ar, muitas partículas. O que os radares medem é a velocidade dessas partículas e os que nós tínhamos a funcionar mediram a velocidade em todo o fenómeno, o que muitas vezes não é fácil, porque apesar de estar a acontecer no ar, não o vemos. É o caso típico da turbulência no aeroporto da Madeira. Ela está lá, mas vê-la é um problema diferente. Neste caso, o sistema natural deu-nos oportunidade de ver o fenómeno em tempo real e observá-lo nas estações todas.

Vai repetir-se?
Estamos a ter estes picos de chuva que estão a deixar toda a gente um bocadinho aflita. E porque é que as pessoas estão a achar estranho? Temos uma situação em que de repente há 40 mm numa hora.
Daqui a uns tempos diremos se isto é uma mudança ou se é um caso particular, mas não nos podemos esquecer que tivemos agora uma chuvada em França que engoliu uma autoestrada. Tivemos as chuvas na Alemanha e na Bélgica com um impacto urbano completamente diabólico e não estamos a falar dos autarcas terem deixado entupir as canalizações ou que elas não existem. Estamos a falar da zona mais desenvolvida do mundo. Para este tipo de fenómenos extremos muito localizados não há infraestruturas, como nós as desenhamos hoje em dia, que resistam.

Vamos ter que redesenhar as cidades, por exemplo?
Ah sim. Eu diria que a Holanda já está a ver isso com outra seriedade porque é um país que vive abaixo do nível do mar e tem que atacar isso de outra maneira. Mas é evidente que as cidades e o espaço urbano vão ter que ter um novo desenho.
Seria necessário tomar outro tipo de medidas e o quanto antes?
Vai ser necessário começar a tomar algumas medidas mais estruturantes, mas chamo a atenção que estamos a falar de investimentos de grande volume. Seguramente que os políticos – e essa parte não é nossa felizmente – vão ter de tomar as suas medidas.

Mas sente que da parte política essa preocupação existe e que a preparação das instituições envolvidas neste tipo de fenómenos também existe? Por exemplo, a Proteção Civil está a olhar para os furacões da mesma forma que já olha para os fogos e para os sismos?
Sim, sim. Se pensar na Proteção Civil de há 20 anos, eles evoluíram tremendamente. O nível da Proteção Civil há 20 anos era incêndios em edifícios e pouco mais. O âmbito aumentou. Há meia dúzia de anos nem sequer havia responsáveis de Proteção Civil em todas as autarquias e hoje em dia já existem porque os cidadãos estão mais informados e percebem o que se pode fazer melhor. Os riscos também parecem ser mais importantes. Do lado da economia a situação, para mim, é completamente clara: nunca o sistema económico esteve tão atento aos registos naturais como agora, porque há muitos bens segurados.

Em relação à literacia climática, em que ponto estamos em Portugal?
Não tenho dúvida nenhuma de que se há países que seguem o tempo e o clima é Portugal, a Inglaterra, a Irlanda, todos os países que têm fachada atlântica.

É perceber o clima ou acompanhar a meteorologia?
Até há diversos grupos de meteorologia amadores fantásticos e que são super-empenhados. Há centenas de estações meteorológicas. Se estamos preparados para acontecimentos diferentes dos anteriores, não, não estamos. Não estamos, mas os Estados Unidos também não. Se virem estes furacões que têm entrado para o Texas ou para o Luisiana, atenção que as pessoas não estão preparadas. Estão preparadas na Florida, sempre estiveram. Têm defesas em casa e já sabem o que hão de fazer às janelas. Quando veio o Leslie ninguém sabia o que havia de fazer. Esta necessidade de que é preciso de estabelecer conhecimento é verdade, mas também temos meios que nunca existiram, temos televisões todos os dias. Qualquer furacão que entra em Miami é seguido.(…)
No caso de outros países, e os Estados Unidos são um bom exemplo, têm jornalistas especializados nesse tema. É um tema que abre os noticiários. Por cá, o clima é notícia quando existem estes fenómenos extremos.
Em 2012, quando entrei aqui no Instituto, a ideia da direção da RTP na altura é que não queria meteorologia na televisão. Muito mudou. Mudou – espero que também porque mudou a qualidade do nosso trabalho – mas porque mudou a perceção das pessoas. Os meios respondem ao que as pessoas querem saber. Se reparar bem nunca houve tanta pressão dos media para seguir este tipo de situações como agora.

Esse então é um dos fenómenos a que vamos assistir com mais frequência em Portugal. Se quisermos elencar os fenómenos extremos que vão ocorrer mais vezes em Portugal, quais são?
Flash floods – inundações rápidas – é provável que tenhamos mais situações deste género, stressando bastante as zonas estuarinas, porque o apport de água é muito grande, pondo também em grande stresse as zonas urbanas densas e os viadutos que são rios. Basta andar num viaduto hoje, com o pico da chuva, para ver que aquilo é um rio.
Vamos assistir a ondas de calor. Temos tido um número significativo de ondas de calor e isso tem, essencialmente, um problema relacionado com as pessoas de idade que vivem sozinhas, problemas de desidratação. Temos um problema estrutural relacionado com as secas por causa da produção agrícola. A agricultura também tem sido das áreas mais dinâmicas a tentar antecipar-se à mudança do clima. Temos um problema de água, se bem que o problema de água doce está bastante restringido à zona da bacia do Sado e à zona do Algarve, onde é preciso haver algum tipo de adaptações ou correções. Teremos um problema grave no que diz respeito à subida do nível do mar. Nisso é que não há volta a dar.

Quais são as previsões no curto prazo?
O mar tem subido 2,5 mm por ano. Acelerou agora um bocadinho mais, mas pense de outra forma. A Terra sempre teve subidas e descidas do mar, porque tem a ver com os ciclos de glaciação em que se tem os polos cobertos de gelo e os ciclos contrários em que não há praticamente gelo nos polos, toda a água está nos oceanos e os oceanos estão mais altos. Os geólogos sabem identificar em qualquer sítio onde é que está o nível máximo e o nível mínimo. Estamos a falar de 80 metros, à volta disto. É o limite que a água pode subir e descer. Nós, se continuarmos com um ciclo de aquecimento grande, estamos a fazer nalguns séculos aquilo que a Terra faz em 10 mil anos, o que é um problema. Isso significa que podemos ter subidas muito significativas de nível do mar. Portugal é um país razoavelmente montanhoso, é verdade, e há muitas regiões em que isso não é muito significativo porque tem falésias, tem rocha perto do mar. Mais metro menos metro, o impacto não é significativo.

Olhando para as várias regiões do país – e já distribuiu alguns dos fenómenos extremos por algumas delas – vê que haja zonas que venham a ser mais afetadas do que outras? A questão do clima é global, mas ele não é democrático, afeta mais umas regiões do que outras.
Ele não é democrático. O Algarve está a ser razoavelmente mais afetado pela seca, porque está muito perto da transição da zona dita tropical. Quando a gente fala em zona tropical, as pessoas imaginam uma zona luxuriante, mas na verdade zona tropical do ponto de vista climático, é também a zona dos desertos. O Saara está a expandir-se, o que é que isso quer dizer? Quer dizer que se nós desenharmos a linha dos pontos em que está a chover 100 mm de água por ano, que é um valor insuficiente para manter a agricultura, e se pensarmos que isso é o limite do Saara e que ele está a progredir para norte e para sul, está a gerar migrações. A população subsaariana, sobretudo esta, está a emigrar. Atravessa o deserto e está a emigrar para a Europa. O Algarve está mais perto desta situação mediterrânica. Depois, nós temos dois portugais. Isso sabe-se desde o Orlando Ribeiro. Temos o Portugal mediterrânico, que será do Montejunto/Estrela para sul e temos o Portugal atlântico. O Portugal atlântico é sempre mais húmido e mais fresco e o Portugal mediterrânico mais quente e mais seco. O que estamos a ter é um extremar dessas situações. Vamos ter situações diferentes no interior e no litoral, no norte e no sul e nas zonas estuarinas e não estuarinas. Depois temos um panorama geral de migração das pessoas do interior para o litoral. De uma forma politicamente bastante incorreta, estamos na altura de ter que investir nas cidades.

Porque as zonas urbanas são aquelas em que os problemas se vão agravar?
Vão-se agudizar. Temos que investir mais nas cidades. Há vários planos feitos, seguramente bem feitos e usando o que os modelos nos indicam, mas do ponto de vista estrito da mudança climática eu diria que as cidades têm que ter uma atenção superior ao que têm tido.

Temos capacidade de evacuar uma cidade perante um fenómeno extremo?
Não temos. Não sei se assistiu a algumas evacuações na Califórnia devido aos fogos. Foram catastróficas e olhe que a América tem estradas largas e muitos carros com muita potência, mas a evacuação por carro é um problema em todo o mundo. Ninguém sabe evacuar carros. Sabem evacuar a pé, que funciona para os tsunamis, porque basta 200 ou 300 metros, mas não funciona para os fogos florestais.

Mas o objetivo dos planos municipais de emergência é identificar determinados sítios a que as pessoas podem e devem recorrer.
Exatamente. Há muitos municípios que têm trabalhado nessa área e têm feito muito pensamento estratégico sobre esse assunto, mas a ideia de que temos que investir em Lisboa, no Porto ou em Leiria não é muito popular, porque são vistos como locais privilegiados à partida e onde há mais capacidade económica. Mas também são os locais que têm uma densidade de pessoas muitíssimo superior e, perante acontecimentos pontuais muito intensos relacionados com a mudança climática, vai ser preciso repensar muitas coisas. Somos muitos preocupados quando um acidente está a ocorrer, temos imensa pena depois de ele ter ocorrido e uma semana depois já esquecemos tudo. Isto é a verdade. Existe uma grande dificuldade em preparar as pessoas para um acontecimento raro. Estamos preparados para um acontecimento frequente, como levar o guarda-chuva porque vai chover. Mas dizer assim “todos os anos há um piano que te vai cair em cima da cabeça”, não sabemos preparar as pessoas para esse acontecimento. Não faz parte da nossa forma de viver.

Mesmo com mais informação?
Mesmo com mais informação. A resposta tem de ser mais estrutural, ou seja, as cidades têm que ter mais zonas que não congestionem com automóveis se precisarem de ser evacuadas, a capacidade de escoamento de água, nalguns casos tem de ser revista. A possibilidade de termos um furacão a fazer landing outra vez pode levar a que as pessoas tenham de estar preparadas para saberem como fechar as portas, as janelas, que tipo de estores é que são possíveis. Tudo isso tem de ser repensado

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Daqui a uns séculos, a vida na Terra vai continuar a ser possível e viável?
Primeiro, vamos ver se chegamos lá. Não é garantido que cheguemos lá. Estamos a falar em 2021. Daqui a 10 anos pense no que esteve aqui a falar e veja em que estado é que está. Pode estar em dois: tivemos capacidade de alterar e as coisas são diferentes ou, pelo menos, vemos a luz ao fundo do túnel ou pode dizer que aumentar 3,5 graus não é muito.

Podemos dizer isso?
Não. Com 3,5 graus já tem o diabo na atmosfera.

Mas conseguimos travar alguma coisa? O que é que já não se consegue travar?
O oceano e um ambiente um bocadinho mais energético também não me parece que consigamos travar.

O aumento da água do mar não prejudica os recursos de água doce?
Em princípio não, porque o aumento da temperatura na Terra vai aumentar a evaporação do oceano. Teoricamente até vai haver um bocadinho mais de água na atmosfera. A água nunca fica muito tempo na atmosfera, cai. Vai do estado sólido, líquido e gasoso, precipita e vem para a Terra. É por isso que os países que estão fora desta zona dita mediterrânica até têm tido mais precipitação, por isso é que se vê inundações brutais na Inglaterra, na Escócia, no norte da Europa, na Polónia. Por acaso estamos na zona que perde precipitação, estamos numa zona de fronteira.

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